(Imagem da rede mundial)
No tempo em que jogava com bolas de gude, arrastando os joelhos em pedra grês, areão ou chão batido, as curiosidades faziam parte da existência, muitas das quais estampadas nas páginas dos famosos almanaques. Qual a capital da Finlândia? Qual o maior peixe que existe? Qual a escalação da Seleção Brasileira na Copa de 58? Sabe cantar todo o Hino do Grêmio? Como se diz bom dia em alemão?
Também havia as idiotices na linha “como se diz tal coisa em francês” porquanto a resposta era um palavrão em português, mas o que seria a infância sem elas? Isto só vira um problema se o adulto se consolida um idiota e ainda se diverte com tais asneiras. Quando apostávamos corrida era comum alguém gritar “O último é mulher do Padre!”. Lá eu sabia o que isto significava … Ademais, casos de pedofilia eram raros e na Igreja, então, supostamente inexistentes.
Não figurava entre os melhores nas bolas de gude e, conhecendo o tamanho das minhas sandálias, escolhia os adversários. Sabia que não poderia enfrentar alguém que acertava a bola-alvo a mais de um metro de distância! Também não sabia impulsionar a esfera no “inhaque”, me valendo de uma técnica cujo nome vulgar é impublicável. Tinha uma coleção de bolinhas, dentre as quais as ágatas eram motivo maior de admiração. Ninguém colocava ágatas em jogo. As que enchiam nossos bolsos eram quase todas pinicadas pelos impactos e algumas mesmo fraturadas por conta de terem sido atingidas por esferas extraídas de rolamentos usados.
Era um tempo com menos desperdício. Quantas vezes desentortei pregos com meu pai … Alguns demandavam destreza e, volta e meia, dedos com bolsa de sangue gerados por uma martelada fora do alvo … As calças com joelhos lacerados tinham sua vida prolongada com a aposição de remendos, de couro ou de panos pouco discretos. E não era vergonhoso ir à escola com calças remendadas. Isto me faz lembrar de um senhor que conhecemos em São Paulo. Muito rico e generoso, mandava inverter os colarinhos puídos de suas camisas de uso diário. Promotor de iniciativas ecológicas de alto coturno, protetor dos bugios que residem em sua propriedade às margens de uma represa, me relembra que existem pessoas com este desprendimento e que cultuam a beleza. Algo bem diferente dos que imaginam que aproveitar a vida é esbanjar e se exibir tanto quanto puderem. Não à toa, este senhor, culto muito acima da média, tem sólida formação religiosa.
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Uma das perguntas óbvias daquela época, para testar os rudimentos intelectuais alheios, era “Qual a maior palavra do português?”. Quase todos sabiam e ainda que tropeçando em alguma sílaba respondiam: “Inconstitucionalissimamente!”. Era quase tão importante quanto não errar uma conta aritmética com um só algarismo.
Décadas se passaram e ora adultos ganhamos em conhecimento, mas também em malícia, esta palavrinha digna das serpentes, que traduz a tendência de praticar maldades. Ora sabemos o que é “a mulher do Padre”, mas poucos têm ideia do que de fato significa o advérbio inconstitucionalissimamente.
Inconstitucionalíssimo é o superlativo do que é inconstitucional, ou seja, o excesso do que não é constitucional. Portanto, aquela que então era a maior palavra do português significa um modo excessivo de coisas inconstitucionais. Quando as bolas de gude rangiam nos nossos bolsos sequer sabíamos que havia uma carta magna. Hoje, cãs nevadas, nos desencantamos ao ver que operadores do Direito possam rasgá-la com tão pouca cerimônia.
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A série televisiva Vikings, lançada em 2013 e gravada até 2020, encontra-se entre as mais violentas que já assisti, mas a acompanhei porque tem um alcance histórico que sequer suspeitava. A trilha musical “If I had a heart” (Se eu tivesse um coração) já antecipa metaforicamente o tanto que se pode esperar de violência. Suas incursões navais foram míticas e suas invasões um martírio para os saxões e outros tantos na costa europeia.
Guerreiros então quase insuperáveis, subjugaram os invadidos com relativa facilidade e os extorquiram. Talvez pudessem ter mantido seu domínio por séculos se não houvessem brigado entre si. Quem eram os vikings? Os noruegueses de hoje? Os suecos? Os dinamarqueses? Todos eles têm memória viking e sua falta de coesão seria fatal para o declínio de seu poder.
Ainda que sejam circunstâncias muito diferentes e não tenhamos aquela que talvez seja a maior virtude dos vikings, a coragem, há uma característica comum: a falta de coesão vem erodindo o país. O Brasil está a se destruir a olhos vistos, dividido como jamais esteve. De um lado, governos que se mostraram insuficientes, quando não delinquentes. Do outro, a utopia insone do comunismo. A utopia que matou milhões e parece um visgo de desgraça na história humana.
Para expressar meu desapontamento com a cegueira disseminada, tomo emprestadas as palavras de Leszek Kolakowski sobre utopia em “O espírito revolucionário”:
“Eu discordo de três traços típicos do pensamento utópico: da crença de que o futuro, de alguma maneira misteriosa, já teria chegado e nós estaríamos em condições de alcançá-lo (e não somente de prevê-lo de modo incerto). Também discordo da ideia de que nós disporíamos de um método de pensamento e de ação seguro, suscetível de conduzir-nos a uma sociedade livre de defeitos, de conflitos e de insatisfações. Discordo enfim da crença de que saberíamos o que o homem é “realmente”, em oposição ao que ele é empiricamente e aquilo que acredita ser – e que saberíamos em que consiste sua “verdadeira natureza” em oposição à sua natureza empírica contingente. Cada um desses três componentes da fé utópica é utilizado para fornecer-nos a justificativa e a desculpa de qualquer barbárie. Seu equivalente na vida privada é a atitude daqueles que não pensam senão em adquirir de uma vez só um capital que deverá assegurar-lhe a tranquilidade e a ausência de preocupações pelo resto de seus dias. Há também, no entanto, aqueles que devem preocupar-se a cada novo dia com seus meios de subsistência. E eu creio que a sociedade humana, tomada em um sentido global, não gozará jamais da situação de um capitalista a quem um capital adquirido assegurasse, de uma vez por todas, uma vida tranquila até a sua morte. Ao contrário ela estará sempre na condição daquele que trabalha diariamente para garantir a sua sobrevivência até o dia seguinte. Os utopistas – entre os quais os marxistas ortodoxos – são pessoas que sonham em assegurar à humanidade a situação de um capitalista. Eles estão persuadidos de que este estado é tão desejável que nenhum sacrifício (e, em particular, nenhum sacrifício moral) é demasiado para chegar a ele. Eu afirmo que a razão da mesma maneira que o sentimento de responsabilidade moral vão de encontro a esta ilusão.”
A propósito, a maior palavra mudou: pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico. Preferia a outra, assim como preferia a visão de mundo do menino que fui, com bolas de gude nos bolsos, calças remendadas e muitos ideais, que nunca perdi.