As “Cartas de amor” a que nos referimos são aquelas escritas – provavelmente – pela sóror Mariana Alcoforado, em pleno século XVII e mais precisamente, publicadas em 1669. Elas consistem em cinco cartas de amor, todas curtas e cujo conteúdo permite transparecer uma paixão incondicional da jovem freira, a qual sofre desesperadamente com a distância de seu amado.
Explicamos a situação: Mariana nasceu em 1640 e ela tem menos de onze anos de idade quando é obrigada, por decisão de sua família de renome, a entrar para o convento da localidade de Beja, no sudeste de Portugal; ela é admitida na clausura da Ordem de Santa Clara, a fim de ficar a salvo do brutal conflito provocado, então, pela guerra entre Portugal e Espanha; sem ter nenhuma inclinação religiosa, ela foi assim destinada a uma vida enclausurada até o fim de sua existência, em 1723.
A jovem anseia pelo momento em que poderá regressar a sua família e à liberdade da vida comum, mas isso jamais aconteceu. Um dia, não se sabe a data precisa, chega à cidade de Beja um regimento francês que ali se encontrava para apoiar o país contra a Espanha, na Guerra da Restauração (de 1640 a 1668), e quis o destino que o seu olhar se cruzasse com o do jovem oficial francês Noël Bouton de Chamilly (o qual também era chamado de Conde ou Marquês de Chamilly).
Daquela janela do convento e daquela troca de olhares, nasceu um amor imediato e profundo, e de tal forma produziram essas cinco cartas, que muitos grandes escritores e intelectuais do século XVII duvidaram de sua autenticidade; sua autoria foi por muito tempo contestada, e continua até hoje o debate sobre se as cartas ali reunidas são da própria Mariana ou se foram escritas ou modificadas por Gabriel de Guilleragues (1628-1685), um jornalista, diplomata e escritor francês.
Este debate entre Mariana e Guilleragues à época de séculos passados nunca foi concluído, mas a sua autoria portuguesa tem vindo a ser reafirmada. Sejam “As Cartas” verídicas ou não, Mariana Alcoforado existiu realmente, e o escândalo que houve em torno da expressão amorosa por ela descrita também foi verdadeiro; sua vida, tornada famosa pelas cartas, foi motivo de inspiração a diversos autores e a inúmeras obras teatrais. Mariana, por sua vez, com o tempo, reabilitou-se de sua tristeza, e pelas boas obras que prestou enquanto freira adquiriu o título de “Sóror” ou “Madre”, e chegou à posição de abadessa do convento.
Assim posto, podemos consagrar nosso texto à definição literária que ele merece: As “Cartas Portuguesas” é um romance epistolar publicado no século XVII. Como já sabemos, seu tema central consiste em cinco cartas de amor, e nelas a autora desnuda seus sentimento de ausência afetiva e nos diz sofrer intensamente com a distância do amado. Aos poucos, as cartas vão perdendo o tom de esperança numa reunião, que já era mínimo, e vão se tornando demandas incessantes de notícias e correspondência equivalente.
A solidão de Mariana, seu sentimento de repressão e sua vontade de reter o amado a seu lado são constantes, mas ao que parece, o oficial Chamilly não corresponde em pé de igualdade; mas a jovem continua a pedir respostas maiores, mais afetuosas. Este amor total de Mariana Alcoforado é impregnado de todos os sentimentos que a transformariam numa autora romântica, mas sua pequena obra encontra-se, geralmente, classificada entre os autores barrocos, por esse ser o estilo da época em que vivia.
Analisando a obra de Alcoforado, podemos afirmar que desde seu primeiro capítulo ou carta, ela se refere ao período literário em que está inserida, denominado barroco, pois As “Cartas Portuguesas” inserem-se no preceito da literatura confessional, onde os autores expõem suas ideias e sentimentos. A literatura barroca utiliza a linguagem dramática ao extremo, e o confessionalismo revela um personagem “confesso”, aquele que expõe seu “eu” e que relata suas próprias experiências como personagem central de seu texto.
De qualquer forma, este obra de Mariana é uma grande representante literária do movimento barroco e da literatura confessional e um ícone da literatura portuguesa relacionada à expressão do amor. Apresentamos alguns trechos da escrita da jovem autora; em primeiro: “Ai de mim, a tua última carta pô-lo num estado singular: tanto me batia no peito que parecia querer separar-se de mim e voar ao teu encontro. Fiquei tão prostrada por estes desatinados embates que estive mais de três horas com os sentidos perdidos. Não me empenhava em voltar a uma vida, que por tua causa devo perder, pois me é vedado dispor dela para tu a lograres. Enfim, bem contra minha vontade lá tornarei a ver a luz do dia. Alegrava-me sentir que me finava de amor e, para mais, consolava-me não ficar sujeita a ver o coração despedaçado pela dor da tua ausência.”
Segundo: “Por que se acha ele melhor formado do que eu e por que não me tens escrito? Bem infortunada sou se depois que partiste ainda não tiveste ocasião para o fazer e, muito mais ainda, se tendo-a não te dispuseste a escrever.”
Terceiro: Reconheço que leva sobre mim grandes vantagens e que me fez sentir uma traição que me endoideceu, mas pouca vanglória deve tirar daí! Eu era moça, era crédula, tinham-me metido neste Convento em menina, nunca tinha visto ninguém tão agradável nem ouvido as lisonjas que que me dizia a todo momento.”
Outro extrato: “Mas nada mais quero de si. Sou uma doida em repisar sempre as mesmas coisas. É mister que o deixe e que não pense mais em si. Creio até que já não voltarei a escrever-lhe. Não tenho obrigação de lhe dar contas do que passa em mim.” Mais um trecho: “Não sei porque te escrevo. Vejo bem que só te mereço compaixão e não quero a tua compaixão. Desprezo-me a mim mesma quando considero em tudo o que te sacrifiquei. Perdi a reputação, provoquei as iras dos meus, os rigores das leis deste Reino para com as freiras e a tua ingratidão que me parece o pior de todos estes males.”
Finalmente: “Reconheço que me ocupo ainda muito dos meus ressentimentos e da sua infelicidade, mas lembre-se que a mim mesma prometi chegar a um estado mais sossegado e que hei de alcança-lo ou tomarei uma resolução desesperada de que terá notícias sem maior abalo, bem sei.”
Concluo nosso texto afirmando que a obra “Cartas Portuguesas” é uma grande representante do movimento barroco e da literatura confessional, estando presentes as marcas literárias destes dois processos, na obra. O discurso amoroso enunciado por Mariana é comum a qualquer pessoa em um relacionamento, os fragmentos mostram por partes os principais sentimentos que costumam ocorrer no tipo de relação que Mariana vive. Aquele amor juvenil amadureceu e proporcionou a si mesmo o crescimento de uma obra completa e exemplar desse tipo de gênero literário. Penso que o texto em questão é um grande exemplo da Literatura Portuguesa e que ultrapassou os tempos, mantendo até hoje um sentido completo e que pode ser comparado até mesmo à época atual, visto que o contexto onde aconteceu pode se repetir, sem esquecer que ela foi escrita não para ser publicada, mas apenas como uma confissão de uma mulher apaixonada.