Ontem, sábado, foi nossa apresentação, com o teatrinho lotado. O público era basicamente de alunos de escolas de Manaus, acompanhados de professores e familiares. Japim foi a estrela da noite, especialmente quando cantou a toada do Pajé Sinaá.
O meu pai foi uma onça e me deu
O poder de enxergar para trás
Minha mulher é uma aranha tecedeira
A roupa que uso ela é que faz…
Pela manhã eu tinha passado na capitania e o despachante me assegurou que posso partir para Porto Velho na segunda-feira. Não quis contar pro Alceu antes da apresentação, hoje depois do almoço fui falar com ele. Alceu entendeu, mas ficou um pouco triste com o fim da nossa parceria. Foi lindo o tempo que passei aqui com este pessoal todo do abrigo, tão querido… Mas já faz tempo que estou por aqui, é hora do barco seguir adiante.
Parti cedo rumo à Capitania dos Portos, disposto a passar o dia inteiro por lá, até o momento de embarcar, evitando assim qualquer contratempo que pusesse em risco a viagem. Tinha sido longa a espera, tantas manhãs indo lá conferir se havia um barco disposto a me levar. E por duas vezes, quando tudo parecia acertado, a coisa degringolou, me fazendo retornar ao abrigo, sem direito a reclamar nada. Já estava até pensando em desistir dessas tentativas inúteis, aí no sábado o Agenor me anunciou sorridente:
– Consegui um barco pra você!
– Mas seu Agenor, é sério mesmo?
– Pode crer, é garantido. Um velho amigo meu, segunda à noite você estará navegando.
Só que hoje quando entrei na Capitania a mesa do oficial estava vazia…
As horas foram se escoando intermináveis, aquele calor de sempre, o ventilador virando e desvirando, gente entrando e saindo, e nada. De repente vejo o Agenor no meio da repartição, falando com outro funcionário. Me aprumei na expectativa, mas ele nem me deu atenção e logo sumiu numa sala dos fundos.
Finalmente, depois de outra longa espera o despachante reapareceu, veio direto pra mim e me passou um papel com duas palavras. Era o nome do barco e o endereço do atracadouro: Ferreira, Boca. E se picou sem uma palavra.
Peguei minhas coisas e fui até uma parada de ônibus. No primeiro que parou perguntei se ele passava na Boca. O motorista falou que sim e eu subi. O ônibus tinha o piso e o teto de madeira, boa parte da carroceria também. Não sei quanto tempo rodamos, até que o motorista me avisou que a próxima parada era a Boca.
Eu estava contando com alguma doca, onde eu caminharia sobre palafitas, talvez. Mas a Boca é um lugar de cascalho e muita poeira. E mata por todos os lados. A única coisa que não vi foi água. Como é que um barco poderia chegar até ali? Só se for em carreta puxada por centenas de bois, como o Seival do José Garibaldi, pensei…
Desci do ônibus e ele seguiu viagem com alguns poucos passageiros, fazendo a curva pela esquerda.
A Boca estava completamente deserta…
Examinei a situação: ali estava eu, procurando um barco num lugar onde apenas se via uma nesga de estrada, no meio da floresta… Meu desconfiômetro estava ligado desde a capitania. E o que era uma suspeita se convertia em dolorosa realidade: tudo não passava de uma gozação pra cima de mim. O jeito era esperar, talvez ainda circulasse um ônibus de volta para a cidade.
Aí ao sentar sobre uma pedra percebi um zumbido muito vago, que se fazia mais claro à direita da estrada. Dei alguns passos nessa direção e me deparei com um atalho encavado na terra, que descia contornando o barranco, desaparecendo atrás da vegetação. Resolvi seguir por ele e ao chegar na curva fui surpreendido por uma estranha luminosidade, que entrava na folhagem como uma névoa, tingindo minha mão esquerda de uma cor esverdeada. Essa luz e o zumbido foram crescendo, na medida em que o atalho avançava, e um pouco mais adiante, uma cerca de tábuas de madeira interrompia o caminho. A cerca tinha uma abertura que permitia a passagem de uma pessoa.
Do outro lado se abria um cenário deslumbrante que, de um golpe só, tudo explicou.
A luz verde e o zumbido provinham de uma usina, que ali estava de pé a uns 50 metros à esquerda.
E um pouco à direita deslizava um igarapé, que fazia a curva e se perdia na noite, marulhando suavemente. Havia alguns barcos atracados e no casco azul de madeira do primeiro – não havia sido empulhação do Agenor! – estava escrito com tinta vermelha o nome impecável: Ferreira…
(Na subida de volta pra buscar minhas coisas, ao contornar um monte de lixo descubro uma procissão de enormes formigas de cor alaranjada, cabeças e bundas exageradamente grandes. Elas sobem a ladeira, levando folhas ao formigueiro. Vou até lá, é um imenso formigueiro, com uma entrada principal e outras menores. A massa das formigas entra com pedaços de folhas, em sentido contrário saem outras tantas, mas há algumas que estão ali paradas, como que vigiando os trabalhos. Olho para baixo, a fileira tem uns 15 metros. Sigo-a até o começo, é uma árvore nova de folhas largas, infestada dos bichos. As de cima recortam as folhas com suas mandíbulas em forma de tesouras, as de baixo apanham os pedaços e se põem em marcha, rumo ao formigueiro. O que ouvi não era o marulhar do igarapé e sim o chiado que elas produzem, não sei como. De volta pelo mesmo caminho, presencio a desgraça de uma formigona, que havia saído da fila. Veio um cascudo verde e aterrizou abocanhando a cabeça dela. E ali ficaram os dois, ela tentando se livrar, sacudindo o corpo, ele imóvel, grudado. Ao final de alguns momentos ela também foi se imobilizando.)