(Imagem da internet)
Sentamos no final de uma manhã abafada. As muitas árvores no entorno mitigavam o calor e uma brisa mágica se fazia sentir. Começamos a matear e Seu Aderbal, satisfeito pela companhia, aproveitou para desfazer o novelo da vida solitária que leva. A esposa anda há muito doente e encontra-se aos cuidados das duas filhas mais velhas.
Quando a conheceu ela tinha três filhos, duas meninas e um garoto. A mais velha tinha oito anos. Como a conheceu? A vira na casa de um vizinho e interessou-se. Foi a uma partida de futebol de fazenda onde sabia que poderia revê-la. Nunca chutou uma bola e detesta futebol, mas valeu o sacrifício.
Tempos depois assumiu a moça e seus três filhos. Separada de um maldito castelhano, que batia nela até mesmo na gravidez, juntou-se ao pobre homem. Que ganhava pouco, cortando mato, cuidando de gado alheio e biscateando quanto podia. Debaixo de penúria, vez por outra o prato era feijão com aipim. Ou aipim com feijão. Uma galinha de vez em quando e algumas frutas, como banana e laranja, abundantes nas beiras de estrada.
Por maiores que tenham sido as dificuldades, porém, criou os três enteados, somados aos dois filhos que o novo casal geraria. Atualmente com setenta e dois anos Aderbal pode apor uma cereja em seu bolo de sacrifícios: os cinco seguiram um bom rumo. Sua pedagogia, entretanto, foi daquelas que o colocariam, hoje, no pelourinho da execração. As duas enteadas? Quando viraram moças, disse a elas: não abram as pernas. Não quero saber de outra criança aqui dentro.
Engraçado como certas coisas podem soar vulgares em certas bocas e inocentes em outras. Sua fala é rude, mas não choca. Por que faz rir, mas não escandaliza? Porque não tem malícia. Sua crueza oratória não transpira luxúria. E, tudo indica, funcionou com as enteadas.
Eu já estava quase de saída, tomando as cuias saideiras, quando me disse que tinha um grande arrependimento. Seu olhar pediu que eu voltasse a sentar. Trabalhava na propriedade de uma viúva, mal remediada, que tinha três filhas. Aderbal meio que enamorou-se de uma delas. Ele tinha dezessete anos. Ela, treze. A viúva sugeriu que ele casasse com uma delas. Poderiam morar todos naquele mesmo tugúrio …
Aderbal disse que casaria com a de treze anos, mas precisava de algum tempo para firmar-se, para que pudesse assumir uma esposa. Bateu asas, mas a levou na bagagem do peito. Algum tempo depois ele voltou. A moça arranjara um namorado, com o qual casaria e teria um casal de filhos. Aderbal tratou de esquecê-la.
Uma década mais tarde – quando as curvas de sua estrada já impossibilitavam que a visse pelo retrovisor,- a reencontrou. Ela estava acompanhada dos dois filhos. E disse a ele que poderiam ter sido seus. Mas você não me esperou! foi tudo que conseguiu encaixar no improviso, depois deste direto no estômago.
Então me disse, no seu jeito altissonante, que tinha um grande arrependimento: o de não ter se unido àquela menina de treze anos. Dias antes Aderbal dissera isto ao próprio filho. Mas pai, se fosse assim eu nem existiria! Existiria sim, Pedro, respondeu. Certamente, pensei. Seria um outro Pedro, porquanto o Pedro que existe não existiria.
Me despedi lamentando uma certa amargura naquele homem de setenta e dois anos. Tem já o peso da idade, que parece contudo contar menos que seu fardo de tardias frustrações.
Felizes os que gravaram erros e desenganos no tempo, mas ainda podem polir sua pedra com uma vida nova, fé e o perdão dos pecados. Para quem crê no Nada, como Sartre, resta apenas o absurdo. Sartre não olhou para a esperança, que em contrapartida sugere o Absoluto. Em “Meus fantasmas”, Ernesto Sábato, discorrendo sobre angústia, solidão e loucura, afirma que o Universo, visto sem sentido, “é um universo infernal, porque viver sem crer em qualquer coisa é como cumprir o ato sexual sem Amor”. Felizes os que crêem. Felizes os que amam.