A caminho da Eucaristia de Domingo de Ramos, já recuperado do hospital.
Jesus morreu a recitar o Salmo 21, que começa com a célebre frase «meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?». A parte inicial, citada pelo salmo responsorial da Eucaristia de Domingo de Ramos, expressa, na primeira pessoa, a infinita e misteriosa angústia do Messias. Foi esse o tema central da homilia do Papa Francisco no passado Domingo de Ramos, inspirado nesta parte do Salmo 21.
Estas palavras —disse Francisco— «conduzem-nos ao coração da paixão de Cristo, ao ponto culminante dos sofrimentos que padeceu para nos salvar».
— «Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma. Foram sofrimentos do corpo (…); foram sofrimentos da alma (…). Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” O abandono de Jesus. Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, que é o sofrimento do espírito (…)».
O Papa sublinha o carácter extremo desta prova:
— «Para nos fazer sentir a intensidade daquele momento, o Evangelho apresenta a frase também em aramaico; dentre as palavras pronunciadas por Jesus na cruz, esta é a única que nos chega na língua original. (…) Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender».
Porque desabaram sobre Cristo todas as tragédias do mundo, como diz o Papa:
— «Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre Si o pecado do mundo. E, no auge, Ele —Filho unigénito e predilecto— experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus».
— «E porque foi tão longe? Por nós; não há outra resposta. Por nós. Irmãos e irmãs, isto hoje não é um espectáculo. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim. Este abandono é o preço que pagou por mim. (…) Fê-lo por mim, por ti (…)».
— «Na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não Se deixa cair no desespero (…), mas reza e entrega-Se: grita o seu “porquê” com as palavras de um salmo e entrega-Se nas mãos do Pai (cf. Lc 23, 46) (…). No abandono, entrega-Se. No abandono, continua a amar os seus que O deixaram sozinho. No abandono, perdoa aos que O crucificaram (cf. Lc 23, 34). E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior (…)».
— «Este é o estilo de Deus: (…). Cristo, abandonado, impele-nos a procurá-Lo e a amá-Lo nos abandonados. Porque neles, não temos apenas necessitados, mas temo-Lo a Ele, Jesus Abandonado».
O Papa enumera tantos «cristos abandonados» do nosso tempo: povos explorados, «migrantes, que já não são rostos, mas números», reclusos e também aqueles invisíveis, «descartados de forma “elegante”», as vítimas do aborto, da eutanásia, os idosos e os doentes ignorados, a gente desorientada, etc.
— «Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado e saber amar Jesus em cada abandonado, em cada abandonada. (…) Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós «Se esvaziou a Si mesmo» (Flp 2, 7). Esvaziou-se totalmente por nós».
Mas o Salmo 21 não acaba aqui. Tem uma segunda parte, que começa no versículo 4: «contudo, [meu Deus] sois o Santo; em vós está a esperança de Israel». Sim, há tribulações e violências terríveis, mas podemos confiar no amor de Deus, «Vós sois o meu sustentáculo desde o seio de minha mãe». Os versículos finais do Salmo respondem a tanto sofrimento do Messias anunciando que o fruto é a fidelidade da Igreja, projectada nos séculos sem fim: «a geração vindoura seguirá o Senhor e anunciará a sua justiça ao povo que há-de nascer». No fundo, esta resposta é novamente «por ti, por mim», como disse o Papa no Domingo de Ramos.
Mas esta parte do Salmo é o tema do Domingo de Páscoa.