Imagem extraída da internet (Mundo Educação – UOL)
Façamos umas contas de padeiro, como se dizia antigamente. A China tinha em 2020 em torno de 1,4 bilhão de almas, num território da ordem de 9,6 milhões de quilômetros quadrados. Sua densidade demográfica, portanto, é algo como 145 pessoas por quilômetro quadrado. Em 1960 sua população era de 667 milhões, que padecera muito sob os invasores japoneses. O país experimentara a fome no campo, vencera lutas internas debaixo de muita violência e estava às portas da trágica Revolução Cultural, com expurgos e torturas para nenhum carrasco botar defeito. Desaparecido Mao, chegaria a vez de um homem com altura de 1,57 metro ligar as turbinas da China e dar a ela a estatura de um gigante. Deng Xiaoping é uma destas figuras que poderia inspirar os esquerdóides de todos os quadrantes.
A Coréia do Sul, com seus quase 50 milhões de almas, tem uma densidade demográfica de 488 habitantes por quilômetro quadrado, mais de três vezes a densidade chinesa. Era um país miserável em 1960, com metade da população atual. A Guerra da Coréia acabara com qualquer expectativa e vale lembrar que mesmo Seul, não muito distante do Paralelo 38 e da atual Zona Desmilitarizada, foi destruída. Eis que hoje sua economia caminha perto da brasileira.
Com uma população da ordem de 215 milhões, a densidade demográfica do Brasil é algo em torno de 24 habitantes por quilômetro quadrado. Mesmo levando-se em conta que algumas regiões têm uma densidade irrisória, havemos de admitir que o país tem muito pouca gente para usufruir da generosidade que a natureza nos legou.
Entretanto, sai governo, entra governo, o que continuamos a escutar de círculos supostamente privilegiados é que o Brasil falhou em não implementar um rigoroso programa de controle da natalidade! E, não raro, atira-se nos ombros do norte e nordeste brasileiros a responsabilidade pela miséria geral. Quando ando pela periferia da capital gaúcha fico com a certeza de que estes pensadores se homiziam no sofá ou tapam os olhos para a realidade.
Dias atrás passei por uma região de Porto Alegre onde se concentram catadores e sucateiros. Conversei com alguns e entendi por que as latas de cerveja são tão procuradas. Entre sessenta e setenta latas vazias resultam em um quilo, com valor próximo de um dólar. Perguntei quanto pagavam por peças de aço. Tem ferro, indagou o rapaz. Ah, paga pouco, me disse meneando a cabeça. Um abismo separa os brasileiros, uma clivagem indecente nos envergonha.
E tudo que se escuta é quanto a economia crescerá no ano, qual o tamanho da dívida pública, qual a expectativa inflacionária,… Na voragem do serviço da dívida pública se esvai nosso futuro. O Brasil segue sendo uma vossoroca, com chuvas de aluvião especulativas, neocolonialistas, que arrastam nossa riqueza para poucos bolsos. Bolsos protegidos pelo estamento burocrático e pelos poderes corrompidos, senão pelo roubo à mão desarmada das leis e dos altos salários, no mínimo pelo estou-me-lixando pelo desaire dos desvalidos. E tudo que nossa classe pensante é capaz de gerar é o lamento pelo controle demográfico insuficientemente implementado!
Enquanto isto, a caravana das idéias passa e ladram os cães das ideologias. Precisamos de disciplina, união e patriotismo, sem o que não chegaremos a lugar algum. Com os olhos vendados pela ideologia, porém, os cães latem e mordem, rosnam e dilaceram, ampliando nossa falta de coesão, numa arruaça típica de embriagados ou desassisados, que só nos rebaixa e desune.
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Se há um tipo asqueroso, este é o bajulador. Como um cão faminto de barriga cheia, corteja os mais aquinhoados, os melhor colocados, sempre a farejar oportunidades, convites e ganhos. Sua fala é cheia de salamaleques, de mesuras, que não raro escondem seu real desprezo pelos que bajula. Tanto é que, como cães bípedes, abandonam sem qualquer cerimônia um “dono” de sua atenção e passam a seguir outro que se lhes afigura mais vantajoso, digamos assim.
Descobri Beethoven mal saído da faculdade. Comprara a coleção de suas sinfonias, em discos de vinil, e ouvi sobretudo as de número três e cinco. Em sua biografia de Beethoven, Romain Rolland incluiu uma passagem imorredoura. Beethoven e Goethe se conheceram em Toeplitz, em 1812, e o músico nunca aliviou sua crítica ao escritor, filha de seu gênio indomável: “Os reis e os príncipes podem bem fazer professores e conselheiros privados; podem cumulá-los de títulos e condecorações mas, o que não podem, é fazer grandes homens, espíritos que se elevem acima do estrume do mundo … E quando dois homens, como eu e Goethe, estão juntos, tais senhores precisam sentir nossa grandeza”.
A seguir Beethoven narra a cena em que encontram, numa caminhada, toda a família imperial austríaca: “Nós a vimos vir, desde longe. Goethe desligou-se de meu braço, a fim de desviar-se para o lado da estrada. Em vão disse-lhe tudo o que desejei e não consegui dele nada sequer. Afundei então meu chapéu sobre minha cabeça, abotoei meu sobretudo e com os braços enlaçados nas costas, avancei através de grupos mais densos. Príncipes e cortesãos fizeram mesuras; o duque Rodolfo cumprimentou-me, tirando seu chapéu; a imperatriz foi a primeira a me saudar. – Os grandes me conhecem. Para minha satisfação vi a procissão passar por Goethe. Ele se sustinha à margem da estrada, profundamente curvado, seu chapéu à mão. Reprovei-o depois, não o perdoando em nada …”.
Segundo Rolland, Goethe nunca perdoou Beethoven e deixou o registro numa carta: “É infelizmente uma personalidade absolutamente indomável. Sem dúvida, tem razão de achar o mundo detestável; não é, porém, esse, o meio de o tornar agradável, para ele e para os outros. É preciso desculpá-lo e lastimar, pois que ele é surdo”.
Decorridos quarenta anos, curiosa a vida, ainda que raramente escute música como no passado, ainda que preserve minha identificação com a força da quinta sinfonia, ainda que hoje prefira a nona, sigo admirando muito mais o músico que o escritor. No teatro da vida, com atores de todos os tipos e estaturas, não me agradam os bajuladores.