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Machado de Assis escreveu alguns contos particularmente impiedosos em sua vasta produção literária; um deles é “A causa secreta”, publicado em 1885, o qual já analisamos: ele é extremamente sombrio e característico do sadismo a que chega a natureza de seu personagem na sociedade em que ele vive. O outro intitula-se “A Igreja do Diabo”, de 1884, no qual se procura fundar uma religião própria, onde as pessoas seriam livres para praticar maldades; tal não se concretiza porque a tendência humana leva seus adeptos a praticarem o bem. Por outro lado, hoje vamos tratar de um terceiro conto, intitulado “Pai contra mãe”, no qual todas as crueldades são permitidas – e até aconselháveis – de se produzirem, visto que a sociedade assim o exige e assim o pratica.
Falamos da escravidão no Brasil, que começou no início no século XVI, durante o Período Colonial, e que consistiu no uso da mão-de-obra forçada de mulheres e homens africanos, sendo essas pessoas retiradas à força dos muitos grupos étnicos dos quais faziam parte no continente africano e trazidas ao Brasil nos chamados navios negreiros; essa atividade econômica do país valia-se dos maus-tratos, do chicote, da tortura das “máscaras” de ferro, e de tudo que pudesse ferir e humilhar os escravos.
Tal situação durou até meados do século XIX, quando se abranda a escravidão, em um período que vai de 1850 a 1888, com a Lei Áurea. Dessa forma, podemos supor que a chibata não fosse mais utilizada pelos senhores, mas na realidade, ela foi permitida até 1909, já algum tempo depois do fim da escravatura (pelo menos, oficialmente). E é aí, nesse ponto histórico, que temos o desenrolar de nosso texto de hoje, “Pai contra mãe”, de 1906, dois anos antes da morte de seu autor.
O conto, escrito cerca de duas dezenas de anos após o fim da escravatura no Brasil, é a única obra de Machado – que era mulato – em que ele trata abertamente da escravidão. A partir disso, ele apresenta a história de Cândido Neves, Candinho, de 30 anos, um indivíduo pobre que, no momento, trabalha com o ofício de pegar escravos fugidos; este personagem principal não se contenta com emprego algum. Cândido tem necessidade de estabilidade, pois já trabalhou em tudo que é ramo, inclusive na fábrica de máscaras de folha-de-flandres que serviam para tapar a boca dos escravos fugidios; as máscaras têm três buracos, dois para ver, um para respirar, e são fechadas atrás da cabeça por um cadeado.
O autor nos informa que “era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.” (Temos aqui uma passagem realistas deste conto, ao mesmo tempo em que a ironia de Machado alcança seu mais alto grau). Continuamos com nosso conto: Cândico casa-se com Clara, uma moça órfã de vinte e dois anos, que mora com a tia Mônica, com a qual também trabalha como costureira.
O sonho do casal sempre foi o de terem uma criança e, quando tal se torna real, surge o problema do sustento do filho. Diante dessa situação, a tia de Clara aconselha Cândido a arrumar um emprego fixo e digno, alertando-o da triste vida que terão e que o filho morrerá de fome, já que a atual ocupação do homem, a de pegar escravos fugidos, está em “crise” com a falta de escravos determinados a fugirem e a andarem pelas localidades já conhecidas por Cândido.
Desse modo, tia Mônica sugere que a criança seja levada à Roda dos enjeitados – que consistia em um mecanismo utilizado para abandonar os recém-nascidos que ficavam ao cuidado de instituições de caridade. De início, o pedido foi visto como errado, cruel e injusto mas, com a situação agravando-se, com a prolongada escassez de escravos fugidos, Cândido não vê outra saída senão fazer o que lhe pede a tia de sua mulher.
Mais adiante, indo a caminho da Roda, o homem avista uma mulata no outro lado da rua e, lembrando-se do anúncio que viu apresentando uma escrava fugida e de sua recompensa de bom custo, dispõe-se a capturá-la e assim, ele pode acabar de vez com a ideia de entregar seu filho à caridade. Apressadamente, deixa o seu filhinho em uma farmácia, cujo proprietário havia conhecido na véspera, e parte em busca da escrava, vai à “caça” para obter o dinheiro, cem mil-réis. Consegue fazer tal ato, captura a escrava, esta afirma que está grávida, ela pede clemência, mas Cândido leva-a para a casa de seu “proprietário”.
A escrava, assustada e desesperada, aborta em meio à situação. O ocorrido nada importou para Cândido (que nome eivado de ironia!), pois ele recebe a recompensa e vai em busca de seu filho, alegre com a ideia de que não vai precisar mais levá-lo para a Roda dos enjeitados. A situação é repassada para Clara e para sua tia, que aceitam o fato e perdoam Cândido, uma vez que ele conseguiu trazer dinheiro para amenizar a situação de todos. Ao final, Cândido profere uma frase lancinante – digna do tema deste texto – ele nos diz, tranquilamente: “–Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.”
O filho da escrava morreu para que seu filho sobrevivesse. O confronto entre o pai e a mãe é nitidamente exposto e, afinal, vencido pela visão da conquista, seja a que preço for necessário. O pensamento irracional e a atitude bestial nos são permitidos e aceitos em nossa sociedade brutal; ela nos autoriza uma liberdade que pode aniquilar qualquer ser, desde que sejamos satisfeitos em nossa individualidade, a única que nos interessa verdadeiramente. Resumindo, a história nos faz criar uma imagem de que o escravo não é ser humano, ao afirmar que “nem todas as crianças vingam”.
Deixa claro o poder do senhor dominante e frente ao qual sai vencido o mais fraco, e expondo de forma relevante a fraqueza moral e a instabilidade emocional de ambas as situações. Completamos: o ideal da escravidão como algo natural, torna os negros seres inferiores, que podem ser tratados como mercadorias. Machado de Assis, mais uma vez, ensina-nos a pensar neste clima psicológico, onde a partir do ambiente de cativeiro, cria-se um clima de violência, um mundo insano e comercialista que visa apenas o dinheiro e onde os ideais e seus valores são desconsiderados, nada valem para quem não valoriza a razão.
E é justamente essa a mensagem que nos é repassada, a imagem de nosso país perante as condições daquela época, as dificuldades encontradas pela maioria da população, até onde o ser humano pode suportar quando existe a necessidade de sobrevivência, de estabilidade e de compreensão social.