Era um radioso Domingo de Páscoa, cheirava a Primavera e, pela primeira vez, Nicole entrava em Portugal, com o seu marido, que também nunca aqui viera! Trazia no coração e na lembrança, a imensa saudade que sua mãe, Tina, guardava do seu país! Sim, aquela que fora conhecida em tempos como ‘a menina mais bonita’ da aldeia nunca mais voltara a Portugal…e Nicole, dois anos antes, prometera à mãe que iria conhecer o seu país, a sua aldeia, a sua família portuguesa…
Tina, Cesaltina Alves de seu nome, partira da sua aldeia beirã, num outro domingo de Páscoa, trinta anos antes, quando seu pai a expulsara de casa , ao descobrir que a mais velha dos seus sete filhos, a menina querida dos seus olhos, estava grávida .
‘-Vai -te embora, desgraçada, que trazes a desonra a esta casa, e não voltes a pôr aqui os pés!’
Nem os gritos, nem as lágrimas da mãe, nem as dos irmãozitos mais novos, tinham comovido o pai. Talvez tivesse bebido um pouco mais durante o animado almoço de Páscoa, ou talvez a mãe não tivesse escolhido o melhor momento para lhe falar, mas a verdade é que o pai de Tina perdera a cabeça, quando a mulher cautelosamente lhe começara a dar a notícia…
O Sr. José Alves, emigrado em França para poder sustentar tanta boca em sua casa, vinha sempre passar o Verão e a Páscoa à sua aldeia para matar saudades da família. Ali deixava, sua mulher, a D. Almerinda, com os seus sete filhos, seguro de que ficavam bem entregues. Contudo, nunca gostara da ideia de a sua filha ir trabalhar na fábrica vizinha… e agora estava ali à vista o que lhe acontecera!
Para ele, um homem recto e de carácter forte, era completamente inaceitável que a sua filha de 18 anos, a Tina, fosse desonrada por um qualquer namorado, um ‘marmanjo’, ainda por cima, um estrangeiro qualquer a trabalhar por uns tempos ali na fábrica, um ‘garoto sem eira nem beira’, que iria embora qualquer dia e nunca casaria com ela…
Humilhada e em silêncio, Tina não ficara nem mais um minuto em casa, e apesar de tão jovem, abalara de imediato, sem mala, sem muda de roupa e sem dinheiro.
A mãe ainda correu atrás dela para lhe dar algum dinheirito, abraçou – a com força, e disse -lhe:’ Vai ter com o Padre Júlio, ou com a D Helena. Eles ajudam-te! Dá notícias, volta, por favor, quando o pai partir, que eu ajudo, mas guarda bem esse teu bebé! Olha que a vida é sagrada! Não faças nenhuma asneira, minha filha querida!’
Naquele triste Domingo de Páscoa, sentada num banco à espera da camioneta para a cidade onde vivia a sua antiga professora Primária, a D Helena, Tina chorava sem parar. Várias pessoas a interpelaram, mas ela não conseguia responder… à noite, por fim, chegou à cidade e calcorreando ruas desconhecidas, foi bater à porta de D. Helena, que a acolheu com surpresa, mas carinhosamente. Ali ficou alguns dias, poucos, até se organizar. E contou-lhe tudo… e como o namorado a deixara quando soubera da gravidez…
Entretanto, a antiga professora contactou o padre da sua aldeia, e explicou -lhe a situação, pedindo- lhe conselho. Tina queria por força partir e sair do país. O padre Júlio ainda foi falar com o pai de Tina, mas também não conseguiu demovê- lo do seu intento de não mais receber a filha em sua casa… então, o padre e D. Helena falaram com Tina, deram-lhe algum dinheiro para as passagens, recomendaram- na a outros portugueses , emigrantes em França, e Tina, agradecida, mas decidida a fazer-se à vida, por sua própria conta, partiu para França , passados alguns dias. Não quis pedir ajuda aos emigrantes, com receio que conhecessem o pai e lhe dissessem onde ela estava.
Em Paris, nos primeiros dias, passou fome, vagueou pelas ruas, procurou restos de comida nos caixotes de lixo, pediu esmola, dormiu escondida e ao relento, até que alguém teve pena daquela jovem tão bonita e a acolheu e lhe arranjou trabalho. Tina começou por fazer de tudo um pouco…lavou escadas, fez limpezas, ajudou em cozinhas de restaurantes, começou a aprender algumas palavras em francês e por fim, arranjaram- lhe provisoriamente, um trabalho interno em casa de uma simpática família de diplomatas com crianças pequenas de quem cuidava com muito jeito.
Quando eles se preparavam para regressar ao seu país, até queriam levá-la, mas faltava pouco tempo para o nascimento do bebe e Tina não quis aceitar. Mudou de emprego, foi para casa de uma senhora portuguesa, modesta, idosa e sozinha, que gostou muito dela e a tratou com carinho até que chegou a altura de dar à luz. A senhora foi, desde os primeiros dias, uma verdadeira mãe para Tina e com a sua ajuda ela pôde criar ali o seu bebé! Ao mesmo tempo, voltou a trabalhar a dias, e acabou por ser ela a cuidar com igual carinho da senhora idosa, até ao fim da sua vida. Esta, não tendo descendência, nem quaisquer parentes, deixou-lhe algum dinheiro e aquela pequena casa nos arredores de Paris.
Nicole entretanto, terminara a escola primária e era uma criança viva, bonita e esperta. Na nova escola, rapidamente se tornou notada pela sua inteligência, empenho, educação e simpatia.
A mãe, por seu turno, continuava a trabalhar para garantir uma boa educação a Nicole! Ela havia de tirar um curso superior e nada lhe faltaria! Por isso, trabalhava arduamente todo o dia, e ainda fazia serão até tarde, com trabalhos de costura ou engomados para fora!
Apesar de continuar a ser uma mulher bonita e que rapidamente fazia amizades, não queria namoros, nem ligava a pretendentes… vivia apenas para a filha e para o seu trabalho!
Todos os anos, pelo Natal e Páscoa, mandava fotos de Nicole à mãe e irmãos. Nunca mais voltara a Portugal, nem perguntava pelo pai. Todos os meses porém, recebia algum dinheiro num envelope, que o padre da aldeia lhe enviava e que só dizia “ para ajuda às despesas com Nicole”. Na verdade, era o pai de Tina que o enviava, mas não queria que a filha soubesse…
Um dia, em conversa com Nicole, deixou escapar o sonho de voltar a casa… se o pai não se importasse…mas seria difícil!
“- Porquê, mãe? Podíamos lá ir as duas, um dia… no verão ! Eu gostava tanto de conhecer os avós, os tios e Portugal…”
Os anos foram passando e Nicole acabou o Secundário, escolheu Medicina, fez um curso brilhante e com sucesso aproximava- se já do final. Nas férias fazia voluntariado, organizado pela paróquia de muitos portugueses, que mãe e filha frequentavam; esteve em diferentes zonas desfavorecidas, também em países vizinhos e no último ano foi para África numa missão católica com médicos voluntários de outras nacionalidades.
Ao regressar dessa ultima viagem, um pouco mais prolongada, trazia um namorado estrangeiro, que logo quis apresentar à mãe…,porém, à chegada, percebeu de imediato que a mãe estava doente, e levou-a a fazer exames. Estava muito magra, debilitada, sem apetite, nem forças, de facto, e os exames e análises eram muito preocupantes…
Nicole internou a mãe no hospital onde trabalhava, não lhe quis contar toda a verdade descoberta, mas animava-a dizendo:
– “ A mãe vai ficar boa e nós, na próxima Páscoa, vamos a Portugal! Prometo!
“A mãe sorria-lhe tristemente, mas já tinha percebido a gravidade do seu estado. Pediu- lhe que chamasse o padre português da sua paróquia. Nicole fez-lhe a vontade.
À saída do quarto, o padre chamou Nicole de parte e disse- lhe:’ Tua mãe tem um sonho!’
-‘ Eu sei ! Já lhe prometi que vamos a Portugal no Verão… se ela melhorar…
– ‘ Não, Nicole, o sonho dela é bem maior do que isso… é ter a certeza de que o pai lhe perdoou…tenho um plano e tu podes ajudar…’
Uma semana mais tarde, depois de nova transfusão de sangue, Tina voltava para casa, muito fraca, mas contente por regressar. Sabia que lhe restavam poucos dias de vida e queria morrer em casa… A filha e o namorado foram-na buscar, disseram- lhe que tinham preparado uma surpresa para celebrar o seu regresso e ofereceram- lhe um lindo vestido estampado com fundo azul-turquesa, da cor dos olhos de Tina. Pelo braço de ambos, Tina entrou lentamente, em casa. Ao abrir a porta da sala, compreendeu então a surpresa nunca imaginada… foi encontrar o pai e a mãe que a esperavam e a abraçaram longamente … chorando de comoção … Tina, abraçada aos dois, beijava- os sem cessar, mas não conseguia falar…também não eram precisas palavras…
E Tina morreu dois dias depois, ladeada pelos seus amores de sempre…
… Agora, chegara um outro Domingo de Páscoa… comovida, Nicole, ao volante do seu carro, entrava em Portugal e dirigia- se à aldeia desconhecida… vinha cumprir a promessa que fizera a sua mãe ! E ela que nunca conhecera Portugal e nascera em França, sentia uma estranha sensação de familiaridade e de pertença.
Olhando, comovida, para seu marido, encostou o carro junto à placa com o nome da aldeia e comentou:- ‘ Curioso! Como este cheiro me é familiar… eu também sou daqui…!’