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Encostamos às 18 horas perto de uma praia, mas à meia-noite saiu a lua cheia e o barco retomou o movimento. Totonho tinha soltado a canoa da popa e remado até a prainha, pra apanhar alguns ramos e alguma outra coisa. Ao descer da canoa, com água pelos joelhos, se movia como se tivesse ganho um súbito problema nas pernas. Mas era por causa das arraias, Laurindo me explicou.
As arraias gostam de águas tranquilas e com lama.
Se você entra num desses lugares, é melhor ir arrastando os pés na lama, pra espantar o peixe.
Agora, se você pisa nela, a arraia reage lançando seu ferrão, que está na cauda.
O ferrão da arraia possui dentes de serra dos dois lados. Se ele penetra na carne, as serrilhas se encravam e vão dilacerar os tecidos, ao ser extirpado. Além disso, o interior do ferrão possui um veneno que provoca dores, vômitos e outros distúrbios, quando não mata.
Laurindo conta que seu mestre conselheiro teve que usar muletas por dois anos, depois que pisou numa arraia.
O sr. Santero sai com frequência, e se inclina na amurada, para fazer sondagens da profundidade do rio. (Nenhum barco pode navegar nos rios amazônicos sem contar com um prático a bordo.)
A sonda se compõe de um pequeno prisma de ferro seguro por uma cordinha. Se indicar zona perigosa, pela pouca profundidade, presença de bancos de areia ou outros obstáculos, o timoneiro fará soar a sineta, que cobre o ruído do motor e transmite o sinal à casa de máquinas, para diminuir a marcha ou parar. Então o barco irá manobrar, buscando os lugares mais navegáveis, segundo a indicação do prático. Encontrado o caminho certo, 3 batidas seguidas da sineta ordenam acelerar e retomar a velocidade normal.
Neste quarto dia da nossa viagem começam a surgir trechos de navegabilidade difícil.
Agora mesmo o prático, que estava na roda do leme, deu sinal para interromper a navegação e encostar o barco. Em seguida mandou Adauto soltar a canoa que está amarrada na popa e foram os dois remando e fazendo medições, procurando um canal suficientemente profundo. Dez minutos de sondagem o convenceram que teríamos de voltar atrás e tentar a travessia pelo outro lado, próximo à margem esquerda do rio.
Finalmente, depois de muitas sondagens, o sr. Santero localizou um canal navegável e o barco seguiu.
Na canoa que vai presa na popa a gente se banha e lava roupa. Da primeira vez que a utilizei tive alguma dificuldade e medo, já que o barco não para, a gente entra na canoa se equilibrando, em plena velocidade e com esta se agitando bastante de um lado a outro. A canoa está presa ao barco por uma corda apenas, fixa na balaustrada da popa.
A iluminação interna da embarcação é feita com lâmpadas incandescentes, a corrente é fornecida pelos motores. Na primeira noite havia um defeito, que depois Totonho consertou.
O barco é aberto lateralmente, exposto aos ventos que nos livram dos carapanãs mas trazem bastante frio pelas madrugadas.
Todos dormem em redes, exceto Laurindo e eu.
Leio bastante e converso com o alagoano. Quando o barco encosta e o motor silencia, toco um pouco de violão, até a chegada dos mosquitos. Aliás, à medida em que subimos o rio, cresce o número de insetos em quantidade e tipos diferentes. A noite é dos carapanãs. E os dias, antes tão mansos e agradáveis, agora vêm infestados de piuns, maruins e mutucas. O pium deixa uma bolota branca com uma ponta vermelha de sangue no meio. A mutuca deixa uma bolota que se coçada infecciona e vira ferida.
Até aqui vínhamos comendo arroz, feijão, farinha e jabá (charque).
Mas o sr. Ferreira decidiu parar em um pequeno povoado e comprar um porco, que foi abatido e está pendurado – carne e toicinho – ao lado da cozinha.
O café da manhã é com leite condensado e bolachas salgadas. As horas de refeição – que afinal não passam de minutos, porque não gastamos mais do que cinco ou dez, no máximo – são sempre uma pequena festa.
Havia um regatão comerciando ao pé do barranco. É um verdadeiro bazar flutuante. Tem de tudo, cachaça, querosene, sal, charque, fumo, fazendas, roupas masculinas e femininas, cobertores, bijuterias e bugigangas de todo tipo.
As vendas não são a dinheiro, todo o comércio se faz na base da troca. O turco ou sírio-libanês troca suas mercadorias por bolas de borracha, redes de tucum e outros produtos artesanais dos moradores do povoado.
Os coronéis donos dos seringais não gostam dos regatões, me explicou Laurindo. Eles querem que os seringueiros só comprem no barracão, que é o armazém dentro do seringal, onde eles estão sempre endividados. (Eu já sabia disso, desde que li A Selva, do Ferreira de Castro.)
Subimos o barranco e caminhamos pelo lugarejo, olhando as seringueiras com seus cortes transversais, de onde escorre o leite (látex). Este leite é colhido em latas que se fixam na árvore. A seguir é misturado com uma substância que evita que ele se “coalhe” e se inutilize. A sua cor branca toma uma tonalidade mais escura e a pasta que vai se formando é então enrolada, formando uma bola. Essa bola é que será vendida, por peso. Alguns trapaceiam, misturando substância de qualidade inferior no interior da bola, como “leite” com muita sujeira. Por isso quem compra costuma cortar a bola, para ver se não se contrabandeou sujeira para aumentar o peso. Por outro lado, muitos compradores sacaneiam manipulando as balanças, roubando no peso.