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Marcelo Tas é um daqueles jornalistas que conseguiu deixar sua marca em praticamente tudo em que se meteu. A começar por seu Ernesto Varela, um repórter ficcional que saiu mundo afora a causar risos e constrangimentos. Um ator, diria, acima mesmo de um jornalista. Para que tivesse sucesso, lançou mão de seu talento, de sua criatividade, de sua mente faiscada para improvisar e de uma incomum cara-de-pau.
Revisitei algumas de suas entrevistas para subsidiar este texto, refrescando a memória televisiva, começando pelo divertido e surpreendente Ernesto Varela. Com bom timing, edição competente e o mais importante: Marcelo Tristão Athayde de Souza se divertia no papel de Varela. Como se vê, seu nome artístico começa com Marcelo e o Tas é o acrônimo de seu sobrenome.
Mesmo assistindo pouca televisão, tenho acompanhado sua carreira em diferentes emissoras, ainda que através de spots. Dias atrás assisti na íntegra uma entrevista que gravou em seu mais recente programa, veiculado pela Cultura, da Fundação Padre Anchieta. Seu convidado era Leonardo Boff. Um programa desta natureza pressupõe uma certa tensão e exige, penso, momentos de algum desconforto para o entrevistado. Caso contrário vira propaganda, sem que haja qualquer contestação, por maiores que sejam as eventuais asneiras, lançadas como penas num potente ventilador.
Marcelo começa a entrevista com um poema de Mendes Campos e pergunta a Boff se ele deixou a Igreja para não perder a esperança. Um início como este me fez lembrar do começo de uma das entrevistas no Jornal Nacional, nas eleições de 2022, quando Bonner disse ao candidato – que permanecera preso por mais de um ano, condenado por corrupção,- que nada mais havia contra ele. Todo e qualquer embaraço cai por terra, como se Netuno antecipasse ao navegante que o mar será espelhado na travessia.
Por certo não se pode imaginar uma combinação precedente à entrevista, que a transformaria no que antigamente se denominava marmelada, mas é quase uma piscada de olho, desenhando que o entrevistador pode ser mais um fã, um admirador, do que um jornalista imparcial, e que o entrevistado pode içar as velas.
Convidado para divulgar seu último livro, Boff declara que o Papa Francisco é da “nossa linha”, e que foi discípulo de Juan Carlos Scannone, difusor da teologia da libertação na Argentina. Aduziu que Francisco convidou os teólogos condenados, como Gustavo Gutierrez, ele, Boff, e outros, para uma espécie de reconciliação oficial. Segundo ele, diante de uma forte reação de alguns Cardeais, o encontro não foi possível. Segundo sei, já existe aí um detalhe importante: Gutierrez, considerado o pai da teologia da libertação, nunca abandonou o sacerdócio e nos anos subsequentes tirou o relevo da luta de classes, suavizando seu fulcro com a luta pela vida. Ademais, li seu principal livro e o reputo fraquinho. Boff é muito mais denso, mais articulado e floreia o galo. Talvez para demonstrar erudição. Ou, como hoje suspeito, como anestésico para introduzir um bode num ventre humano.
Daí por diante Marcelo Tas passa a atuar como levantador para Boff cortar na rede, contra uma quadra vazia. Uma bola fora atrás da outra. A despeito disto, Tas meneia a cabeça como quem não só concorda, como se delicia com o que imagina incontestável. Boff diz que a Igreja torna as mulheres invisíveis, que não respeita os direitos humanos, … Que para Ratzinger, depois Bento XVI, ele, Boff, era o único teólogo que valia na América Latina. Por ter estudado na Alemanha, por ser sério e citar os Padres da Igreja …
Boff diz que Roma transforma as pessoas: quem é progressista vira conservador, quem é conservador vira reacionário e quem é reacionário vira fundamentalista. Tas então aduz que o Vaticano é um lugar gigantesco, com muitos funcionários, “onde se vê o poder”.
Bem, o Vaticano é o menor estado soberano do mundo. Tem aproximadamente 44 hectares e cerca de mil moradores. Uma rápida consulta no portal de Pareci Novo, cidade vizinha daquela em que resido, tem 5730 hectares e 3885 habitantes. O que não se diz, por quem não acredita, é que o gigantesco do Vaticano é o seu legado, sua missão espiritual.
Boff surfa na onda e diz que o Vaticano é uma atmosfera de poder e de pompa, de submissão e corrupção. Tas se mostra escandalizado e toma o rumo do processo contra Boff, por representar um perigo para a doutrina da Igreja.
Na sequência Boff diz que tem um dom, como Lula, de não guardar nem ódio, nem ressentimento. Uau! Tem mesmo certeza disto? Quando Bento XVI abdicou, Boff concedeu uma entrevista a Pedro Peduzzi, da Agência Brasil, e entre outras coisas afirmou que “Uma coisa é o Ratzinger professor e acadêmico, que era extremamente gentil e inteligente, além de amigo dos estudantes. Dava metade do salário aos estudantes latinos e da África. Outra coisa é o Bento XVI, que exerce função autoritária e centralizadora, sem misericórdia com homossexuais e [adeptos da] camisinha”. Será que Boff falaria mal de um pranteado em pleno velório?
Chegou ao desplante de afirmar que quem mais fez guerras no Ocidente foi a Igreja Católica (!). Sugere que Cristo se envolveu num ativismo pelos pobres e que teólogos como ele operam pela liberdade, por mais vida. Ou estou enganado ou Cristo veio para nos libertar do pecado e não de César. O que obviamente não significa que os cristãos estão isentos das injustiças ou de que não devam combatê-las. Criticou os pentecostais por conta do “evangelho da prosperidade” e porque jamais dizem “felizes vocês, pobres, ai de vocês, ricos”. Não há uma contradição em sua crítica?
Afirmou que a carência de sacerdotes na Igreja é prova de que ela é “institucionalmente um fracasso”, que o celibato é a causa e que ela deveria obrigar os padres a casar. Tas então emenda que “padre vai ter que aprender o que é ser casado … pra poder inclusive falar de amor”. Boff anuiu: “Exatamente!”. Bem, em minha santa ignorância sinto que há uma confusão nisto. A palavra grega ágape significa amor, “o amor que se doa, o amor incondicional, o amor que se entrega … Já para o carinho, a afeição, a afinidade, o amor entre irmãos, os gregos usavam o termo philia” e para uma afeição de natureza sexual utilizava-se a expressão Eros. Não bastasse isto, se para entender algo é crucial que se tenha a mesma experiência, só deveríamos ter ginecologistas e obstetras do sexo feminino, os oncologistas deveriam ser egressos de um câncer, os terapeutas que lidam com drogados deveriam ter sido viciados … e assim por diante.
Mas o pior estava por vir. Não acreditava no purgatório, porquanto mera invenção medieval, mas agora decidira reintroduzi-lo porque muitos devem passar por ele, inclusive alguns santos. Que o inferno não existe e que satanás é uma invenção humana. O diabo não existe, é uma fake news.
No texto “Desatanizar a Satã ou o Diabo”, publicado em torno de quarenta dias antes do programa televisivo, Boff afirma que “devemos superar todo o fundamentalismo do texto bíblico. Não basta citar textos sobre o inferno, mesmo na boca de Jesus”. Argumenta que a misericórdia do Pai, como a do pai que acolhe o filho pródigo, é tal que nenhum filho perder-se-á. O Boff que um dia usava termos para iniciados, ora parece redigir para néscios. Parece ter esquecido que o filho pródigo foi resgatado pelo arrependimento.
Acredita que Lúcifer mostrar-se-á arrependido? Seu estado espiritual me parece esvaziado. Perdeu a graça do sacerdócio e chego a pensar que o título de um dos romances de Morris West, “O advogado do diabo”, lhe cairia bem.
Segundo ele, demônio e inferno são criações humanas, “uma espécie de pedagogia sinistra”. Por fim, Boff terrestrializa o que se passou no plano espiritual: “O ser humano pode ser o Satã da terra e da sociedade” e acrescenta que Francisco teria afirmado que “não existe condenação eterna; ela é só para este mundo”. Em busca rápida localizo homilia do Papa Francisco, de novembro de 2015:
“A condenação eterna não é uma sala de tortura, ela é uma descrição dessa segunda morte: é uma morte. E aqueles que não serão recebidos no reino de Deus é porque eles não se aproximaram do Senhor. São aqueles que sempre seguiram pelo seu caminho, afastando-se do Senhor e passando diante do Senhor e se distanciaram sozinhos. É a condenação eterna, é o distanciar-se constantemente de Deus. É a maior dor, um coração insatisfeito, um coração que foi feito para encontrar a Deus, mas por orgulho, por ter a certeza de si mesmo, se afasta de Deus”.
Se algumas manifestações de Francisco geram preocupação a uns e outros, do ponto de vista doutrinal parece inatacável até aqui. Colocar palavras em boca alheia, que sequer as pronunciou, não é uma prática lá muito cristã. Há os que realmente não estão dispostos ao arrependimento e por isto condenam-se a si mesmos. Um amigo, mais versado em teologia, me disse que, agora, só falta Boff revogar o pecado …
Seja como for, há uma pergunta que não quer calar. Nem pode: o que Boff fazia dentro da Igreja? Como se fez frade numa instituição que combateu e combate com tanto ardor? Não é estranho? Até parece um quinta coluna, como o seriam idéias marxistas no seio da Igreja.