Raquel só queria dormir. Durante meses chorara noite e dia a morte do seu filho único de doze anos, naquele fatídico passeio da escola. As lágrimas pareciam ter secado, quase um ano passado, mas agora só queria dormir. Instalara- se nela uma profunda tristeza, uma melancolia incapacitante, um vazio profundo que a paralisava, a impedia de ver luz, levantar- se, encarar o trabalho, e voltar à normalidade da vida dos outros e com os outros. Não queria ver ninguém, nem aceitava médicos, família ou amigos. Só queria dormir…Levantava- se pelo meio- dia para tomar um chá e comer uma torrada. Voltava para a cama, com o quarto sempre às escuras. À noite tomava um banho, bebia um copo de leite, comia algumas bolachas e tomava os calmantes, logo voltando a deitar-se. Era como que uma longa hibernação.
Família e amigos todos se preocupavam com Raquel e o marido… ele tinha uma paciência imensa, mas podia esgotar- se a qualquer momento…
Naquela manhã, puxando a persiana do quarto e abrindo a janela de par em par, o marido dissera- lhe:
– Querida, vem ver as olaias de que tanto gostas! Já estão em flor! E os jacarandás ali em baixo no jardim… e o rio lá ao fundo, parece um espelho! Vem ver!
– Não, não! Por favor, fecha tudo! Quero dormir…
– Mas, Raquel, hoje é o dia 25 de abril… sempre gostaste tanto de ir ver os comícios, o desfile e ouvir o concerto de bandas! Era uma data importante que sempre gostavas de celebrar…vem comigo, vá lá… levanta-te! Fazia- te bem ver gente, apanhar ar, sair de casa…
– Não, por favor…não me interessa nada disso…deixa-me dormir! Vai tu!… deixa- me em paz…
E o marido de Raquel fechou a janela, baixou a persiana, fechou a porta do quarto e foi juntar-se à multidão que cantava e desfilava rua abaixo. Precisava esquecer. Ele também. A perda do filho fora um terrível golpe, um enorme desgosto, uma tragédia nas suas vidas, mas ele procurava reagir.
Entretanto anoitecera. Finalmente a sua rua parecia silenciosa. Eram umas nove da noite. Raquel estava sozinha e já a tentar dormir, quando ouviu a campainha da rua tocar. Uma vez, duas vezes, três vezes. Estranhou, o marido sempre levava a chave. Meio estonteada, levantou- se, enfiou o roupão e descalça foi até à porta, acendeu a luz do patamar e espreitou através do óculo.
Viu uma criança e perguntou quem era.
– Sou um vizinho novo.
Raquel entreabriu a porta e perguntou-lhe o que queria.
– Desculpe, a minha mãe e eu estamos aqui de passagem. Vinha perguntar se o Toyota preto que está na garagem é seu. O nosso carro está ao lado e encontrámos isto no chão por baixo do seu carro…
Ao dizer estas palavras, o garoto mostrou uma pequena estatueta de uma Nossa Senhora antiga, desconhecida, sem braços, nem pés e com a cabeça um pouco escavacada como se lhe tivessem batido.
Raquel abriu a porta de par em par e viu que o garoto teria uns doze anos, a idade do seu filho. Um pouco intrigada, pegou na imagem, examinou-a e devolveu- a ao rapazinho, fazendo – lhe uma rápida festa na cabeça .
– Não, obrigada, não é minha! Mas como sabes que estava debaixo do meu carro?
– Foi a vizinha do 2º andar que estava a arrumar o carro dela e nos disse. Explicou- nos que a senhora deste andar, era dona daquele carro, e era professora de Pintura e Escultura, que recupera peças antigas e disse que devia ser sua…
– Não, não é. Obrigada, desculpa mas eu já não sou professora de nada e estava a dormir. Boa noite! Com licença!
E Raquel fechou a porta e voltou a deitar-se. Aquele menino podia ser seu filho. De certeza eram da mesma idade…
Passados alguns minutos, novo toque de campainha. E desta vez um bater com os nós dos dedos.
Um tanto aborrecida, Raquel voltou a levantar- se e ao espreitar pelo óculo viu uma jovem senhora com o rapazinho.
Entreabriu a porta, a senhora sorriu- lhe com doçura e apressadamente, disse- lhe apenas:
– Desculpe, sou mãe deste menino. Por favor, fique com esta imagem. Não sabemos de quem é, mas talvez a possa recuperar quando puder. Fico- lhe muito grata. Boa noite!
Sem mais palavra e sem esperar resposta, mãe e filho deixaram a Nossa Senhora no chão à porta, e desapareceram no mesmo instante.
Raquel, apanhada de surpresa, nem pôde responder, pegou na pequena estatueta e levou- a para dentro, deixando- a sobre a mesa da sala. Estranho encontro!
Os calmantes começavam a fazer efeito e Raquel deitou- se de imediato. Só queria dormir. Aquele menino lembrava- lhe o filho…de certeza da mesma idade…
Na manhã seguinte, o marido entrou no quarto de Raquel, acendeu as luzes, e mostrando- lhe a imagem de Nossa Senhora, perguntou- lhe como tinha aparecido ali em casa.
Um tanto estremunhada, Raquel sentou- se na cama e contou- lhe o sucedido na noite anterior.
Então o marido, disse- lhe:
– Olha para ela, Raquel! Pobrezinha! Já viste o que lhe fizeram? Olha a expressão de tristeza que ela tem…Tens de a recuperar! Volta a pegar no teu cinzel, na tua paleta e nos teus pincéis!
Sempre fizeste obras belíssimas! És artista, querida! Acorda, Raquel! Isto é um sinal! Está na hora de voltares à vida…
Dizendo isto, o marido abraçou- a, carinhosamente.
Desatando a chorar, Raquel respondeu:
– Não sei se consigo… não sei se sou capaz!
– Sim, és! Recomeça, hoje é o dia!
E Raquel recomeçou. Pouco a pouco voltava à vida. Trabalhou dias e dias, afincadamente, ao longo de todo o mês de maio. Queria terminar aquela tarefa que se tornara, não só uma forte razão para voltar à vida, como também uma paixão. De dia para dia, aquela Nossa Senhora, desconhecida, estava cada vez mais bela… embora com uma expressão triste…
Aproximava- se o fim de maio e o marido de Raquel propôs- lhe um fim – de -semana em Fátima. De regresso a Lisboa, Raquel sentia-se diferente, como que renascida e revigorada. Quis comprar uma caixa de bombons para oferecer ao rapazinho e sua mãe, os novos vizinhos que lhe tinham levado a Nossa Senhora. Queria convidá- los a ver a imagem, quase pronta.
Ao chegarem a casa, foram perguntar à porteira em que andar viviam a tal mãe jovem e seu filho. Para sua surpresa, a porteira respondeu- lhes que não havia vizinhos novos no prédio.
– Mas no dia 25 de Abril, não viu por aqui uma mãe jovem e um rapazinho talvez com seus doze anos?
– Não, não há cá inquilinos novos, nem visitantes … -respondeu a porteira, igualmente admirada.
Ao entrarem em casa, intrigados, foram ver de novo, a imagem de Nossa Senhora. Acenderam a luz da mesa onde a tinham colocado junto de uma pequena jarra de flores, e olhando para a imagem ambos tiveram a sensação de que Nossa Senhora já não tinha aquela expressão de tristeza, antes parecia sorrir- lhes…
E Raquel, abraçando o marido, comentou:
– Sabes? Acho que tinhas razão… aquilo que aconteceu na noite de 25 de abril aqui à nossa porta é inexplicável, mas foi um sinal ! E posso garantir- te que aquela senhora que aqui apareceu à nossa porta tinha este mesmo sorriso doce…