Augusto dos Anjos, o mais sombrio dos poetas brasileiros, foi também o mais original. Sua obra poética, composta por apenas um livro de poemas, intitulado “Eu”, não se encaixa em nenhuma escola literária, embora tenha sido influenciado por características do naturalismo e do simbolismo. A produção única de Augusto dos Anjos não pode ser enquadrada, propriamente, a nenhum desses movimentos; entretanto, para efeitos de nomenclatura, é por isso que se classifica o poeta juntamente aos seus contemporâneos do pré-modernismo. Além disso, destacamos que, com o tempo, outros poemas foram adicionados postumamente a sua obra única, “Eu”.
Ao nos defrontarmos com este título de uma obra poética, já nos preparamos para a leitura de um autor que nos declara seu engajamento pessoal como nenhum outro o fizera anteriormente. Mesclando termos filosóficos embebidos em puro pessimismo e vocabulário científico, os quais raramente seriam encontrados em textos poéticos, Augusto dos Anjos escreveu uma poesia violenta, visceral, atravessada por uma angústia cósmica, por uma eterna lembrança sepulcral. Mais uma vez, destacamos essa “lembrança sepulcral” em tempo anterior ao “túmulo”, pois quem escreve é o autor; perguntamos, então: como é possível anteciparmos uma situação de “eternidade”? Porque, caros leitores, tratamos aqui de um poeta de pensamento atemporal, sua poesia ultrapassa qualquer racionalidade habitual.
Quando jovem, o poeta cursou a Faculdade de Direito de Recife e nesse período começou a publicar na imprensa local; seus poemas eram considerados estranhos em comparação com tudo que já se escrevera no país, e o mesmo era chamado de “muito triste”. Formado em 1907, Augusto dos Anjos nunca exerceu a profissão de advogado ou magistrado, foi de Recife para a capital paraibana, João Pessoa, onde passou a lecionar Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Mais adiante, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde passou a lecionar Geografia, e em 1912, publica seu único livro, “Eu”, o qual foi parcamente compreendido pelo público leitor, habituado apenas com poemas carregados de lirismo onde dominavam os temas elevados, maviosos e apaixonados. Decide mudar-se, então, para Minas Gerais, onde leciona em Leopoldina e assume o cargo de diretor da Escola da cidade. O poeta vem a falecer de complicações pulmonares, com apenas trinta aos de idade. Quanto ao estilo de sua obra, Augusto dos Anjos é provavelmente o mais original dos poetas brasileiros.
Embora tenha recebido algumas influências do simbolismo e do naturalismo, movimentos poéticos em voga na época, sua feição literária não se encaixa em nenhuma dessas tendências. Para melhor entendimento da obra de nosso poeta, podemos definir o que foram as correntes literárias simbolista e naturalista. O simbolismo no Brasil foi um movimento literário que ocorreu no século XIX e que se opôs a outros da mesma época, como o realismo e naturalismo; o simbolismo surgiu como uma forma de negar a realidade, em um momento marcado pela frustração e medo. Dito de outra forma, o simbolismo buscava uma linguagem que pudesse “sugerir” a realidade, e para isso usavam símbolos, imagens, metáforas.
Continuamos nossa pequena explicação e podemos afirmar que o naturalismo foi uma mobilização cultural importante na literatura e que teve como principais características a objetividade, a impessoalidade e o retrato fiel da realidade. Pois bem, se esses dois fluxos produziram uma certa influência no texto de Augusto dos Anjos, essa foi breve; na realidade, o autor produziu sempre foi absolutamente personalista em sua arte. Pessimista, cósmica, paradoxal, mórbida e angustiante, sua poesia é feita de um vocabulário científico misturado com uma tristeza profunda; o questionamento existencial encontra a ciência e a teoria da evolução de Darwin em uma combinação insólita, jamais vista antes, e constantemente relembra a fatal finitude humana nos termos da decomposição da matéria, da carne putrefata que encerra o tempo do vivente.
E mais: o amor e o prazer são somente uma luta orgânica das células, como o é toda a existência humana, destinada a tornar-se irremediavelmente efêmera. A própria construção dos versos de Augusto dos Anjos exprime essa luta, tudo é dito de maneira dura, cheia de excessos e hipérboles, em métrica rígida. Com efeito, trata-se de uma estética da podridão, da agonia, da deformação, misturando termos filosóficos e biológicos; todo seu trabalho se torna em busca das razões da existência humana.
A poesia de Augusto dos Anjos reverbera uma “eterna mágoa”, uma dor existencial perene a que estão implacavelmente submetidos todos os seres. Augusto dos Anjos obteve fama póstuma; em 1928, a terceira edição de seu livro acrescida de mais alguns poemas vendeu três mil exemplares em quinze dias e mais cinco mil e quinhentos nos dois meses seguintes.
Seu livro “Eu” já ultrapassa as quarenta edições e Augusto dos Anjos segue sendo um dos poetas mais lidos do Brasil, constantemente reeditado. Destacamos alguns poemas do autor. Primeiro, “Versos íntimos”: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera. / Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável! // Acostuma-te à lama que te espera! / O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera. // Toma um fósforo. Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja. // Se a alguém causa inda pena a tua chaga, / Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!” “Versos íntimos” talvez seja o mais conhecido dos poemas de Augusto dos Anjos; trata-se de um soneto decassílabo que exprime a revolta diante da vivência atroz que nos indica o pensamento “o homem é o lobo do homem”; nessa “terra miserável”, “entre feras”, não florescem os afetos, ao contrário, é um mundo de ingratidão, onde o beijo precede o escarro, onde aquele que ontem afagava, hoje apedreja. Segundo poema: “Queixas noturnas”: “Quem foi que viu a minha Dor chorando?! / Saio. Minh’alma sai agoniada. / Andam monstros sombrios pela estrada / E pela estrada, entre esses monstros, ando! // […] O quadro de aflições que me consomem / O próprio Pedro Américo não pinta… / Para pintá-lo, era preciso a tinta / Feita de todos os tormentos do homem! / […] Bati nas pedras dum tormento rude / E a minha mágoa de hoje é tão intensa / Que eu penso que a Alegria é uma doença / E a Tristeza é minha única saúde. // […] Sobre histórias de amor o interrogar-me / É vão, é inútil, é improfícuo, em suma; / Não sou capaz de amar mulher alguma / Nem há mulher talvez capaz de amar-me. // O amor tem favos e tem caldos quentes, / E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal; / O coração do poeta é um hospital / Onde morreram todos os doentes. // Hoje é amargo tudo quanto eu gosto; / A bênção matutina que recebo… / E é tudo: o pão que como, a água que bebo, / O velho tamarindo a que me encosto! // […] Melancolia! Estende-me a tu’asa! / És a árvore em que devo reclinar-me… / Se algum dia o Prazer vier procurar-me / Dize a este monstro que eu fugi de casa!” “Queixas noturnas” é um longo poema, do qual destacamos alguns trechos e sabemos, já pelo título, que se trata de uma lamentação, dor, agonia, monstros, aflições, tormentos, doença; tudo isso acomete o poeta tocado de uma tristeza intensa.
O próprio autor luta para expressar tamanha aflição diante de uma vida em que o amor, o prazer, a luz solar, tudo perdeu o sentido. Uma importante menção é a do tamarindo, árvore que desde a infância o acompanha e que aparece em diversos outros poemas. Trata-se de um dado biográfico: Augusto dos Anjos sentava-se à sombra do tamarindo quando era criança e também ali escrevia, quando adolescente; a árvore foi preservada e pode ser visitada no Memorial Augusto dos Anjos, no município de Sapé, no estado da Paraíba. Gostaria de concluir nosso texto com alguns versos do poema “O poeta do hediondo”: “Eu sou aquele que ficou sozinho / Cantando sobre os ossos do caminho / A poesia de tudo quanto é morto!” Para finalizar, é isso o que propomos hoje, caros leitores: mágoas e dores na vida de nosso autor, transformadas em poesia pujante, brava e corajosa.