Naquela noite, Carlinhos acordou estremunhado e sentou- se na cama, esfregando os olhos. Voltou a chorar ao perceber que havia uma nova discussão entre os pais. Era assim há vários meses…o pai chegava tarde a casa, com um ar desalinhado e um cheiro estranho; não tinha trabalho, mas chegava sempre tarde a casa, para jantar e depois ia logo para o quarto.
A mãe fazia tudo: levava a irmã pequenina à creche e o Carlinhos à escola. Em seguida ia para o escritório e ao fim do dia, ia buscar a mana à creche e já com sacos de supermercado, passava em casa dos avós paternos a buscar o Carlinhos e regressavam os três a casa.
Carlinhos, agora com oito anos, lembrava- se bem do tempo em que tudo era tão diferente e eram todos felizes: o pai vendia carros num ‘stand’ de automóveis perto da sua escola, levava- o e ia buscá-lo à escola, era brincalhão e disponível para ajudar nos trabalhos para a escola, faziam construções Lego, jogavam xadrez e dominó… o pai dava banho à mana e adiantava o jantar…
Depois viera a pandemia, o pai fora despedido, mas a mãe, contabilista, trabalhava a partir de casa…a casa era pequena, não havia jardim e as discussões tinham começado por tudo e por nada…geralmente eram de noite, quando todos já estavam deitados e Carlinhos não percebia bem o que diziam, mas ouvia gritos e vozes alteradas.
Desta vez porém, Carlinhos assustou- se muito, porque ouviu nitidamente a mãe a gritar ao pai: ” Isto assim não pode continuar! Vai- te embora, vai para casa dos teus pais! Deixa esse maldito álcool! Tens de te tratar!” E em seguida, ouviu a porta do quarto e a porta da rua a baterem com força…e Carlinhos enfiou- se na cama, tapando a cabeça para nada mais ouvir, e chorou amargamente…
Na manhã seguinte, não se atreveu a perguntar nada, mas o pai não estava. A mãe levou a pequenina à creche, como de costume, e em seguida levou o Carlinhos à escola. Parando o carro à porta, olhou para ele, pegou-lhe na mão, carinhosamente, e tentando a custo conter as lágrimas, explicou -lhe que o pai tinha um problema e estava doente por ter ficado desempregado, tinha de se tratar e ia para casa dos avós até ficar bom.
Carlinhos ouviu atentamente e quis saber se não podia ser tratado em casa.
A mãe disse que não.
– Mas eu não quero que vocês se separem. Eu gosto muito da mãe e do pai…
– Vai ser só algum tempo, Carlinhos, até o pai ficar bom…reza por ele!
Passaram- se meses e Carlinhos já não ia para casa dos avós ao fim da tarde. A mãe ia busca – lo à escola. Aos fins -de -semana porém, os avós iam buscar o Carlinhos para passear, almoçar uma pizza, lanchar na geladaria favorita, e conversavam de tudo.
Invariavelmente, Carlinhos perguntava pelo pai e dizia que tinha saudades. Os avós diziam que estava a melhorar devagarinho e que o pai também tinha saudades. A avó sempre se afastava um pouco com ele, e à despedida, abraçando-o com ternura recomendava: “ Carlinhos, reza ao Jesus, para que passe este ‘desaguisado’ depressa!”
Ele não sabia bem o que era um ‘desaguisado’ , pensava até que seria o nome da doença do pai, mas sofria com a separação dos pais. Gostava muito de estar com os avós e vinha sempre muito contente para casa, mas entretanto o rendimento escolar piorara muito. Mudara de atitude na escola: já não queria brincar com os amigos no recreio, nas aulas estava sempre distraído a desenhar e os trabalhos de casa vinham cheios de erros.
A professora, apercebendo – se de que havia problemas familiares, chamou a mãe para uma entrevista.
Com sensibilidade, empatia e bom senso, a professora falou da quebra de rendimento escolar do Carlinhos, mas procurou alargar o tema da conversa e em dada altura, disse- lhe:
– “Chamei-a também por outro motivo! Preciso muito da vossa ajuda! Como deve saber, neste último trimestre vamos fazer uma exposição de trabalhos dos alunos sobre automóveis, fórmula 1, etc. Temos já uma visita de estudo a uma fábrica de automóveis aqui perto, e outra marcada a um Kartódromo perto de Évora. Gostava que nos acompanhassem.
Precisamos de dois casais, porque são muitas crianças! Acha que conseguem? Penso que o Carlinhos ia ficar tão contente…
Precisava também de um pai, e lembrei- me de seu marido por ter trabalhado num ‘stand’ de automóveis, para vir falar aos alunos sobre o aparecimento dos primeiros automóveis e sua evolução ao longo dos tempos. Será que poderei contar convosco?”
A mãe, apanhada de surpresa, ficou sem palavras, mas garantiu que iria perguntar ao pai e daria resposta em breve.
No regresso a casa, a mãe de Carlinhos encheu- se de coragem, e pela primeira vez desde que o mandara sair de casa, telefonou ao marido. Combinaram almoçar juntos no dia seguinte. Conversaram longamente e no final decidiram aceitar o convite da professora. Empenharam- se no apoio aos projetos da escola, e Carlinhos estava feliz ao ver pai e mãe na escola com tanta frequência. Aos fins-de-semana já saíam todos juntos e chegaram a fazer uma visita ao kartódromo de Évora para reconhecimento do local e levarem informações à professora.
Entretanto, surgira uma nova hipótese de trabalho ao pai de Carlinhos e ele aceitara.
Sentia- se agora um homem renovado, tinha recuperado a auto- estima, e voltara a ser para Carlinhos, o pai de antigamente: brincalhão, disponível e carinhoso. Abandonara a bebida por completo!
A mulher olhava- o de novo de modo diferente. Só faltava o regresso a casa.
No fim do ano, no arraial da escola, Carlinhos andava feliz, correndo de um lado para o outro com um ‘papagaio’ que lhe saíra numa tômbola. O pai tomava conta de uma barraquinha de sopas e febras e a mãe ao lado dava colo à mana, enquanto falava com outras mães. Escusado será dizer que Carlinhos subira as notas todas e terminara o ano com êxito. À distância, a professora olhava aquele casal com especial simpatia.
No final da festa, ao cair da noite, viu- os sair de mão dada e sentiu- se feliz!