A voz do Totonho interrompeu meus pensamentos sombrios, e não era a voz mansa de sempre. Num inesperado tom enérgico e de mando ele chamou todo mundo pra ajudar a puxar a carga do porão para o convés, sem perda de tempo. É claro, se a água molha os fardos os produtos ficam arruinados…
Mas havia um outro motivo, como logo percebi. Era pra deixar livres a quilha e as paredes interiores do casco, para que ele pudesse localizar o vazamento.
O seu Ferreira, com a palidez da morte no rosto, seguia calado como todos nós as instruções do Totonho, que naquela situação havia se tornado o comandante de fato. Essa palidez, vem do medo de perder a vida? – me pergunto. Não, deve ser o medo de perder o barco…
O pensamento de perder a vida necessita mais tempo para ganhar corpo e peso, do contrário ele permanece como uma ideia meio abstrata na panela existencial. (Um filósofo disse: se a vida se acaba, se acabam também todos os medos.) Mas o peso da ameaça de perder o barco, seu patrimônio, é tremendo e imediato.
Totonho mandou cessar o trabalho da bomba mecânica, que dava pouco rendimento devido à impossibilidade de colocá-la na posição mais adequada. E fazia demasiado ruído, não deixando ouvir o barulhinho da água se infiltrando e impedindo assim a localização da fissura.
Novamente se fez silêncio e novamente se ouviu a água entrando pelo casco, como se fosse uma pequena vertente, correndo sobre pedras cobertas de limo, no meio da floresta.
Os pensamentos jorram da nossa mente, como a água de uma fonte que não podemos estancar. Suspeito que a memória de toda uma vida se acendeu na palidez do seu Ferreira. E então ele revê cenas de quando veio, bem jovem, trabalhar nos seringais. E como, ao contrário da maioria dos soldados da borracha, conseguiu sobreviver às doenças e ao trabalho escravo, fugindo numa canoa com dois companheiros. E como depois de muito esforço e sofrimento ao longo dos anos juntou um dinheiro e comprou o barco. Agora, uma pequena fissura no casco vai destruir tudo, vai lhe arrancar seu patrimônio, vai engolir o fruto de uma existência de lutas e privações…
Se orientando pelo rumor da água, Totonho se pôs a tatear as paredes internas do casco à procura do furo, até que descobriu onde era. Então subiu para o convés e mandou Piqueno soltar a canoa da popa, para ajudá-lo na inspeção da parte externa do casco. Com nós outros acompanhando petrificados o vaivém do seu corpo negro na noite escura.
A água nos porões já estava a ponto de cobrir os paletes que serviam de suporte aos fardos, e foi acionada novamente a bomba motorizada.
Perder a vida é como a gente chama, quando o coração deixa de trabalhar e interrompe o fluir sanguíneo que alimenta os órgãos, as células do nosso corpo. É o que acontece na morte por afogamento, por exemplo.
Mas nós vivemos alienados dos nossos órgãos internos.
E o ideal é que o coração siga com seu trabalho escravo, sem falhas, e a gente nem tenha que pensar nele… Eu sim, tenho medo de perder a vida. Deve ser porque não tenho patrimônio…
Totonho se jogou no rio e mergulhou na completa escuridão, à procura do rombo na madeira, Piqueno ficou na canoa esperando, com um candeeiro aceso.
Debaixo d’água, tateando às cegas, deslizando as mãos pelo casco, sem poder respirar.
Quantos minutos ele aguentou submergido, não sei. Também não dava pra ver quando ele vinha novamente à tona. Apenas se escutava o barulho das águas agitadas, como se fosse por um enorme peixe do rio. E em seguida um novo mergulho.
(O sr. Santero não empalideceu, ele estava dormindo em sua cabine, a barulheira que se desencadeou o fez chegar perto pra ver do que se tratava, mas sem se envolver muito. Já o Piqueno, ele não tem como aumentar a palidez de sempre, das suas doenças crônicas. E eu também ando pálido, pode ser que peguei um amarelão pelo caminho.)
Ao final de vários mergulhos Totonho conseguiu localizar a posição do rombo. E subiu novamente ao convés, foi buscar uma machadinha. Depois arrancou uma travessa de madeira de um palete e começou a cortar uma porção de pequenos gravetos. Impressionante a combinação da força maciça do seu corpo arqueado, jogado pra frente, com a concentração e a grande presença de espírito que ele pôs em ação. Tateando, experimentando, inventando… Com a atenção desarmada e angustiada de cada um de nós grudada nele.
Por fim, usando umas estopas improvisadas de sacos velhos, Totonho começou a fazer a vedação da fenda. Por dentro e por fora, voltando a mergulhar inúmeras vezes para isso. Quando ele subiu do último mergulho, veio com as mãos tremendo. E com uma palidez terrosa no rosto, das várias horas de trabalho aniquilante.
Mas então sim, a bomba exaustora secou os porões. Quando ela parou, fez-se um silêncio antigo e acolhedor.
E começamos a descer novamente os fardos para o porão, respirando aliviados, na noite do rio.
Grande Totonho. Negro baiano, neto de escravos. Trabalhador humilde, sem patrimônio. Salvou o barco. Salvou nossas vidas.