Chegamos ontem em Porto Velho, o Ferreira ainda está lá com todo o carregamento, porque a capitania só abre segunda-feira. Quando desembarquei, a terra firme nada tinha de firme. Caminhando, após tantos dias nas águas do rio Madeira, parecia que o chão dançava debaixo dos meus pés.
O barco atracou perto da histórica ferrovia Madeira-Mamoré. Quem anda por ali logo percebe os fantasmas dessa grande aventura, que se confunde com a fundação de Porto Velho. Mais do que isso. A ferrovia foi terminada em 1912 – um ano mágico! – e por ela se escoava a borracha dos seringais, a cassiterita e o ouro. Esses trilhos, essa Maria Fumaça são impressionantes assombrações, nas profundezas naufragadas da Belle Époque.
Junto ao rio, um pouco para o norte é o bairro Arigolândia, para onde viemos.
Estamos parando em casa de Valdir, um amigo de Laurindo. Por aqui mora a maior parte dos integrantes da Guarda Territorial. Segundo Valdir, antes havia um imenso araçazal selvático neste lugar. Ele foi derrubado na época da segunda guerra mundial, para serem construídas as moradias de madeira e de palha dos guardas, que na maioria eram soldados da borracha. Gente simples que mal sabia assinar o nome: arigós.
Um vizinho veio pra dois dedos de prosa. Ele é mais velho e conta que quando chegou aqui, não havia estrada, eles tinham que abrir picadas na mata. E o que mais se escutava eram rugidos de onça e gritos de macacos. (Valdir nos contou um causo daqui.
“As pessoas contam que em anos passados em Porto Velho havia um homem baixinho que vivia rondando o hospital São José, sempre vestido com uma espécie de uniforme. Quando alguém morria no hospital, o cadáver ficava sobre um bloco de pedra no necrotério, esperando ser removido. Pois esse baixinho passeava por ali chuleando, e se percebia que o cadáver era de mulher e não havia ninguém por perto, ele aproveitava e ia transar com a defunta.”)
Laurindo me levou para participar de uma sessão do seu grupo religioso. Foi na casa de um comerciante, dono de uma loja (Mundo Moderno?) no centro da cidade. Lá estava também o João Caetano, vizinho do Valdir.
Havia uma mesa comprida, com cadeiras para os participantes que logo foram chegando, ao todo eram umas quinze pessoas. Sobre a cadeira na cabeceira da mesa à minha direita havia um arco verde, onde se viam as palavras: Estrela Divina Universal. E entre as palavras a figura de duas estrelas-cometas, uma apontando para a esquerda e a outra para a direita. Depois que todos tomamos assento, foi servida uma bebida que eles chamam “chá do vegetal”. Tinha um aspecto escuro, como a água de certos igarapés. E o gosto era estranho, como uma mistura de café com azeitona e mais outra coisa. No silêncio que se seguiu lancei um olhar de relance para os lados, as pessoas estavam concentradas e continuaram assim, até que o dirigente da sessão falou:
– Vou abrir o oratório do divino Espírito Santo.
Um pouco depois disso senti que estava sendo puxado para baixo e me pareceu que minha cabeça estava tombando sobre a mesa. Mas quando quis levantá-la com as mãos vi que ela já estava no alto, sobre os ombros.
A partir desse momento, fui sendo ludibriado por minhas percepções. Continuava ouvindo a voz do mestre sentado na cabeceira da mesa, mas não conseguia acompanhar bem suas palavras, minha atenção se dispersava. Por algum cheiro, por exemplo, que me vinha e eu ficava submergido nele um tempão, até que espontaneamente retornava à normalidade, para pouco depois ser arrastado novamente por uma palavra solta que ficava ressoando dentro de mim, ou pela lembrança de um boto nas águas do rio, ou por três notas de alguma música…
Em certo momento escutei a voz do mestre, muito clara, como dentro dos meus ouvidos:
– Luz da paz e do amor!
Mas no vaivém entre vigília e alucinação, tudo foi se fazendo um mundo de água, onde eu afundava e subia, afundava e subia… De repente a voz do mestre foi afogada por um torrente de outras vozes e a sala se converteu em um redemoinho que girou por intermináveis minutos, até que eu entendi que era um cântico que as pessoas estavam cantando…
Então o mestre levantou de sua cadeira e foi caminhando pela direita, e isso teve o poder de me “despertar”. Ele se aproximava de alguém sentado e perguntava:
– Como vai o irmão?… Já tem luz?… Tem borracheira?…
E assim ele foi de um em um, fazendo sempre as mesmas perguntas.
Quis me concentrar para estar em condições de responder algo, quando chegasse a minha vez. O mestre veio, me olhou nos olhos e seu rosto se transmutou, ficou sendo o rosto do marinheiro Procópio…
Mas a alucinação durou pouco. E pude responder às perguntas, ainda que com monossílabos:
– Bem… Sim… Sim…
O mestre passou por mim e logo depois eu caí numa espécie de catalepsia, fiquei imóvel sentindo as pernas dormentes e incapaz de observar ou escutar qualquer coisa com atenção. Tinha plena consciência do meu estado, mas não podia fazer nada para sair dele. Isso durou um bom tempo, até que vi o mestre levantar novamente de sua cadeira e caminhar pela esquerda da mesa. Daí em diante fui pouco a pouco recobrando a normalidade, enquanto a sessão ia chegando ao seu final. E se encerrou com as palavras do mestre:
– Vou fechar meu oratório com o divino Espírito Santo.