Já passava da meia-noite quando a professora Elisiaria, com as mãos trêmulas e passo incerto, abriu a porta do lar onde vivia desde há alguns meses.
Para trás ficara a sua antiga e querida aluna, Isabelinha, que sempre a levava a casa depois dos jantares de confraternização de antigas alunas do colégio.
Aquele porém, tinha sido um jantar muito especial, organizado só por dez das suas antigas alunas mais próximas, que sabiam ser aquele o dia em que a prof ‘Lisi, das Matematicas’- como carinhosamente lhe chamavam- celebrava os seus 80 anos.
Estava bem diferente do ano anterior para agora, notava- se bem como estava mais envelhecida, muito frágil e trémula; várias vezes se comovera durante o jantar e lhes dissera que sentia que a vida estava a chegar ao fim, a sua missão terminara e, além disso, já não fazia falta a ninguém…
-“ Minhas queridas, muito vos agradeço tanta atenção e carinho… estou velha, quando o Bom Deus quiser, virá buscar- me… não sei quando, mas já não faço falta a ninguém, por isso deve estar para breve… o Parkinson bateu – me à porta, como todos vêem, já me desfiz de tudo, dei a quem precisa e sem família, resolvi ir para um lar, como sabem… mas estou bem, não se preocupem comigo! Sinto que a minha missão terminou, mas (…) tenho- vos a todas no meu coração (…)”
-“ Querida professora, não diga isso… a professora nunca será velha e sempre nos fará muita falta! Gostamos tanto de si…”
Durante o jantar, tinham- lhe oferecido uma linda echarpe com as suas cores favoritas e um cartão de cada uma para ler quando chegasse a casa. Eram muitas as recordações excelentes que partilhavam… nunca tinham tido uma professora como Lisi! As suas gargalhadas frescas e ruidosas, a alegria e paciência com que explicava todas as matérias até à última hora, ficando a ensinar durante os recreios e até tarde no colégio, os chocolates e gelados com que festejava os sucessos das suas queridas meninas…anos e anos de dedicação total, divididos entre colégio- alunas e seus pais, de quem cuidara até ao fim das suas vidas…
Contudo, naquela noite, no grupo habitual faltara a Armindinha… e quando perguntou por ela – aquela menina tão inteligente, mas difícil, rebelde e extravagante, e no entanto, sempre muito próxima da prof Lisi – ninguém lhe deu notícias, dizendo evasivamente , que não conseguiam comunicar com ela, embora tivesse percebido por uma rápida troca de olhares que algo se passaria…
Ao entrar no quarto, sem fazer ruído para não incomodar os ‘vizinhos’ do lar, Lisi começara os preparativos para se deitar, mas o sono não vinha…nunca jantava, e talvez tivesse comido mais do que devia…ou o vinho que levara aos lábios não lhe caíra bem…
Sentou- se ainda à secretária a ler os cartões amorosos das suas meninas! Que palavras comoventes e consoladoras…
Depois, com dificuldade, despiu- se, vestiu o pijama, deitou – se e procurou conciliar o sono…sempre a pensar nas suas alunas, em especial na Armindinha, a meio da noite acordou sobressaltada, com a sensação de que ela a chamava e lhe pedia ajuda… E na manhã seguinte, sentia- se tão cansada que ficou deitada até mais tarde.
À hora prevista para o almoço, entrou na sala de refeições e foi para a sua mesa, apoiada na bengala, arrastando os pés com maior lentidão do que o habitual. No seu lugar, ao lado do guardanapo, estava uma carta e de imediato reconheceu a letra enorme e inconfundível de Armindinha, mesmo sem remetente…
Abriu- a e começou a ler…enquanto a sopa arrefecia…
“ Minha querida professora Lisi!
Muitos parabéns pelo seu aniversário!
Desejo- lhe muita saúde e carinho de todos que a rodeiam! Gostava muito de ter podido estar presente, mas não me foi possível… pedi à Isabelinha, que me quis contactar para ir ao seu jantar, para não dizer nada à professora. Queria ser eu a dizer- lhe…
Querida Professora!
Estou na prisão, aqui no Porto!
Talvez não seja exatamente, uma surpresa para si… não imagina quantas vezes recordo os seus bons conselhos, as conversas intermináveis que tivemos… aquela vez que fugi de casa e a professora me foi buscar às ruas para me cuidar em sua casa… só tenho feito asneiras… destruí o meu casamento com um homem bom que me amava, mas eu nunca quis ter filhos, só fiz disparates para não os ter e ele fartou- se… não acabei o meu curso de Direito, depois arranjei más companhias, meti- me em noitadas, jogo, álcool… perdi bons empregos, minha mãe morreu de desgosto, do meu pai já não sei há muito e por último, porque precisava de dinheiro, ofereci- me como correio de droga… algumas vezes consegui dinheiro fácil com desonestidade e muito risco, mas acabei por ser apanhada num voo vinda da América do Sul e agora estou na prisão …estou na ‘fossa’, não presto, sei que mereço, mas estou tão arrependida… a minha vida não faz sentido! Dei cabo de tudo, fiz sofrer tanta gente…ninguém me visita… já não tenho amigos… gostava muito de a ver a si, que fez tanto por mim, a pessoa que mais me amou depois de minha mãe … preciso dos seus conselhos, do seu consolo e do seu carinho… a professora pode perdoar- me? E será que lhe posso pedir uma última coisa? Poderá vir visitar- me, por favor? (…)”
A professora Lisi não conseguiu almoçar. Escondendo as emoções como podia, desculpou- se dizendo aos companheiros de mesa que tinha de ir ao quarto e levantou- se… agora sabia que a sua missão afinal ainda estava incompleta e não tinha terminado. E com o coração grande e a agilidade mental que mantinha naquele corpo agora tão frágil, limpando as lágrimas, pegou no telemóvel, decidida a pedir à Isabelinha, que a ajudasse na deslocação ao Porto para visitar a Armindinha. Ficaria num hotel durante alguns dias e iria à prisão.
Afinal ainda fazia falta a alguém!