Hoje é domingo, saímos a caminhar e paramos na pracinha na frente dos correios, onde a banda de música da Guarda Territorial estava tocando, no coreto. Sob a batuta do sargento Nézio.
Valdir tinha me aconselhado a ir falar com o comandante da Guarda, assegurou que lá tinha alojamento sobrando. Fui, me apresentei corretamente e passei uma lábia que julguei adequada nas circunstâncias.
O coronel F. soltou uma grande risada que o fez jogar a cabeça redonda para trás e falou:
– Tá certo, por que não, você combina com estas paragens. O pessoal daqui acredita que o boto vira gente e vai dançar nas festas. E aqui na Guarda temos cabos, sargentos, tenentes… Mas todas essas patentes são de mentirinha. Aqui ninguém é militar, são todos civis. Mas usam fardamento, tem armamento, fazem paradas… E o que eles mais gostam é da banda de música, se pudessem eles iam todos os dias tocar na pracinha. Então agora vamos ter um aspirante a oficial R-2 músico, estupendo, juntou a fome com a vontade de comer, haha!
Eu escutava em silêncio o coronel falar, o discurso era sui generis. Será que ele está me gozando?, pensei. Mas aí ele mudou o tom.
– Não se assuste, estou brincando um pouco com você. A Guarda Territorial foi criada como corporação civil, mas com o tempo as circunstâncias cada vez mais foram exigindo um molde militar. E desde que eu estou aqui, tem sido meu empenho enviar os mais destacados para fazerem cursos de aperfeiçoamento e serem admitidos no corpo de oficiais do exército. Os guardas são trabalhadores, ninguém aqui faz corpo mole, seja na estiva, levando ou trazendo a carga dos barcos no porto Cai n’Água, seja na mata, cortando e carregando lenha para a Usina de Energia Elétrica. Sem esquecer o policiamento, a segurança da cidade. E no passado, a construção do Palácio Getúlio Vargas e do Porto Velho Hotel foi com a ajuda da Guarda.
– Por mim você pode ficar alojado aqui no quartel -, ele continuou. Só que não sou eu quem decide isso. Você tem que ir lá no palácio do governo solicitar uma permissão.
Fui lá caminhando, avenida Carlos Gomes, rua Rui Barbosa, rua Dom Pedro II, um bom pedaço. E pensando no coronel F., que era capitão do exército no Rio, quando por algum motivo caiu em desgraça e foi desterrado para cá, segundo o pessoal lá no Valdir. Ele gosta de futebol, é presidente de um clube daqui. Me contaram que ele ganhou o apelido de “Tomate”. É incrível a pontaria de certos apelidos: o corpo, a cabeça, a expressão do rosto dele… É o próprio. Cheguei numa praça com um obelisco e subi a escadaria do palácio.
O governador do Território é escolhido pelo presidente da república. E o 2º homem – um secretário-geral – é o general Felipe, que me deu autorização para ficar alojado na Guarda. A princípio ele negaceou, não se dispunha a me alojar. Tive que incrementar meus argumentos e a carta que puxei da manga foi o Villa-Lobos. Falei da suposta viagem dele pela Amazônia – que muitos dizem ter sido invenção… Só que eu inventei mais algumas coisas e fiz uma breve descrição do Noneto, afirmando que nessa composição o maestro havia usado suas experiências de viagem para criar um perfeito igapó amazônico, com os sons de vozes e instrumentos de cordas. E que eu estava procurando seguir seus passos… Depois dessa lábia mostrei meus documentos do CPOR. Aí o general assinou a autorização.
Em 1943 estas terras, que pertenciam ao estado do Amazonas, foram convertidas no território de Guaporé, mais tarde mudou-se o nome para Rondônia. O Território possui apenas duas cidades: Porto Velho e Guajará-Mirim, a Pérola do Mamoré.
Após olhar a autorização do palácio e meus documentos de oficial da reserva o comandante da Guarda passou a me tratar como oficial. E todo mundo no quartel também.
Mas isso é uma faca de dois gumes. Pois junto com todas as deferências e amabilidades vem uma cobrança: você tem que cumprir com todas as normas do meio militar. A primeira exigência do coronel foi que eu cortasse o cabelo…
Aliás, parece que os franceses também tiveram que engolir essa, suas longas madeixas se reduziram a um corte zero. Passei no 5º Batalhão de Engenharia de Construção e lá por acaso reencontrei os dois, que estão fazendo aquele filme para o Museu do Homem de Paris, a gente se conheceu na casa dos estudantes em Belém. Eles chegaram aqui por outro caminho: Brasília, Goiânia, Cuiabá…
Laurindo falou com a esposa do governador lá no palácio e ganhou a passagem de ônibus até São Paulo, amanhã cedinho ele parte.
Fui alojado no corpo da Guarda, recinto dos oficiais em serviço. A minha cama é macia, dormi muito bem. Só que acordei no meio da noite com uma bruta diarreia. Desconfio ser ancilostomose (amarelão), que agarrei na viagem e tenho que tratar. Talvez a tontura seja também um sintoma disso.
Parece que aqui até a rádio-divulgadora faz levantar poeira. Já vi muita cidade poeirenta, mas Porto Velho bate todos os recordes.
A Voz da Cidade transmite música com alguma propaganda e recados de moradores para sua gente.