Tinha exames marcados a partir do meio-dia. Coisas da vida e da idade. Como me escreveu dias atrás uma de nossas colunistas portuguesas, às voltas com problemas de saúde, Deus nos fez com muitas peças e lá pelas tantas algumas delas precisam de manutenção.
Chegara cedo na capital, me desincumbira de algumas tarefas e restava uma hora para me divertir antes de ir ao hospital. Fui ao sebo de sempre. Ainda não abrira … Cruzei a rua e entrei num outro livreiro, que anos atrás irritou-se comigo porque questionei uma figura de esquerda. Deve ter esquecido, pensei.
Lá estava ele, praguejando contra o prefeito porque privatizou a companhia municipal de transporte coletivo. Um fascista, repetia a cada três ou quatro palavras. Os ônibus andam lotados! Fascista! E ele deu de mão beijada a companhia! Fascista! O povo que se dane! Cuspindo marimbondos, saiu dizendo que voltaria em minutos. Enquanto isto, em silêncio eu garimpava biografias.
Quando voltou disse à sua colega que começara a ler Bauman. Vinha gostando do estilo, mas deixou o livro de lado quando percebeu que Bauman era antimarxista … Não dá! O cara é bom, mas é antimarxista!
Sua reação lembra a de adeptos de uma seita. Teme ter seu alicerce ideológico balançado e põe de lado o que o contraria. Enquanto atacava os fascistas, uma funcionária assentia com a cabeça. Óculos dependurados na ponta do nariz, cadastrava livros recém chegados com a boca aberta e um pigarro de fumante.
Quando visitamos o Irã conhecemos um fotógrafo que também atuava como guia para estrangeiros. Era um gentleman, que infelizmente morreu poucos anos depois. Nos contou que tivera uma livraria e certa feita expulsara um cliente que exsudava alho. Fora!, disse ele, pouco se importando em perder um possível comprador. Pois o livreiro não está longe disto no que diz respeito à ideologia. Seu mundo está dividido entre marxistas e fascistas. Não há intermediários.
Apressei a escolha e paguei os livros. Bons, por sinal, dentre os quais uma biografia de Mao, um ensaio sobre Dostoievski e uma biografia de Rubem Braga. Precisava me dirigir ao hospital.
Nos períodos de espera entre os exames continuei lendo “Meus fantasmas”, que reúne dez episódios de uma entrevista concedida por Ernesto Sábato.
Partindo da premissa de que o mundo anda mal, que subscrevo, Sábato dá uma das melhores explicações que já encontrei sobre crentes marxistas, como o livreiro:
“É compreensível que a juventude queira mudar este mundo apodrecido. Os motivos são inúmeros: guerras atrozes por causas ignóbeis, injustiças sociais, fome … povos oprimidos. Os motivos variam muito e certamente a criação não é sempre consciente. Há, sem dúvida, uma minoria de jovens que tem plena consciência daquilo em que se engajou, e são estes jovens em geral que conduzem a maioria. Porém, o negócio que existe e que cresce cada vez mais é um sombrio e formidável sentimento doentio, uma revolta aparentemente absurda, voltada para destruir os valores de uma sociedade que eles vêem baseada amplamente sobre o privilégio, a mentira e a corrupção. Quando um rapazola adere ao comunismo, não é por ter lido atentamente O Capital. Nem atentamente nem na diagonal. Geralmente, em noventa por cento dos casos, ele jamais o leu. Talvez tenha percorrido aquelas páginas que constituem o Manifesto Comunista. Alguns destes jovens não se perguntarão se a ditadura dita “do proletariado” pretende realmente dar fim aos males que os revoltam, e bem poucos serão aqueles que abrirão os olhos sobre a gigantesca prisão em que se transformou um Estado comunista. Não, eles imaginam que tal regime abolirá a maldade, sem perceber que existem do outro lado maldades equivalentes. No melhor dos casos, substituíram a servidão econômica pela tirania do aparelho político, sem se darem conta de que a escravidão do espírito é ainda pior do que aquela do corpo.”
Reza o ditado que quem procura, acha. Na típica ironia italiana, qui circa, trova. Encontrei esta boa explicação. Agora espero encontrar qual das minhas peças precisa ser reparada.