Reinava ali grande azáfama!
Era um dia muito importante de grande festa e alegria na Igreja!
Os anjos esquadrinhavam o espaço entre o céu e a terra. Cada um com sua missão: uns protegiam o palio, sob o qual o Cardeal levava com devoção o Santíssimo Corpo de Jesus e mantinham acesa a luz da fé nos corações dos penitentes que seguiam Nosso Senhor pelas ruas.
Outros, a custo, seguravam as nuvens para que não desabasse um novo aguaceiro que pudesse fazer dispersar a multidão apinhada atrás do Santíssimo Sacramento.
Outros ainda, velavam para que os mais velhos e de passo tão arrastado não desmaiassem de cansaço, e sobretudo, vigiavam para que alguns carteiristas não se infiltrassem naquela multidão de santos e pecadores, turistas e curiosos, passantes e espectadores.
Havia anjos por toda a parte, mas a maioria das pessoas não os viam, embora algumas sentissem a sua presença.
Agora aproximava- se o momento final da Bênção e das últimas palavras do Cardeal à multidão que se juntava, frente à Sé, ao cimo da rua, separada do topo pelas barreiras metálicas de proteção colocadas por polícias e seguranças.
Era impossível não reparar nela. De óculos escuros, vestida de preto, lindo cabelo louro coberto com mantilha preta, alta, extremamente elegante, com mala de pele e de boa marca, a tiracolo, Camila, ainda jovem, dava nas vistas também pela piedade. Parecia ausente do mundo… e ele já a vira, algumas ruas atrás. Porém, só agora conseguira chegar junto dela.
Nascido e criado em bairros pobres, sem eira, nem beira, o Matias, carteirista, procurava sobreviver à custa de pequenos roubos … depois, arrependia- se e sempre tentava algum biscate honesto nas obras e recados no bairro, mas não era fácil…ninguém confiava nele…
A tarde correra- lhe bem e já podia ter saído da procissão … mas escolhera ainda para sua última vítima, aquela senhora tão bonita com aquele ar ‘chic’ que ele conhecia à légua como indicativo de um nascimento em berço de ouro … é que a mala dela ‘chamava’ por ele…já estava decidido!
Só que Matias não contava que o seu anjo da guarda e o anjo da guarda de Camila tivessem outros planos…
Matias já não acreditava em Deus nem em promessas de políticos, não tinha trabalho nem família, mal sabia ler ou escrever, só sabia contar moedas e notas, e sabia bem que procissões, peregrinações e festas populares, ou noites nas docas, eram locais ideais e de ‘fartura’ para ele…
Furando através da multidão parada, com olhar arguto através dos óculos escuros e sob o boné de cauteleiro, num gesto rápido, ele encontrava- se já atrás de Camila e preparava- se, com canivete afiado, para rasgar o fundo da mala. De repente, no silêncio total que precedia a Bênção, ouviu uma voz poderosa vinda do telhado da Igreja de Sto. António:
– ‘Matias! Pára… não toques na mala da Camila!’
As pessoas de joelhos, em volta de Camila e Matias, curiosamente, nada ouviram… apenas Camila e Matias ouviram essa voz ! Voltando – se então para trás e encarando Matias, que a olhava, surpreendido e com olhar de aflição, Camila, empunhando seu terço, agarrou- lhe na mão com tal força que Matias largou o canivete. E segredou – lhe quase ao ouvido:
-‘ Por favor, a Senhora desculpe… não me faça mal…há horas do diabo… foi uma tentação, mas não lhe tirei nada…’
– ‘Descanse, também não lhe faço mal… mas quero falar consigo… vamos ali à igreja de Santo António!’- respondeu Camila, baixinho e com estranha serenidade.
Incapaz de resistir, por uma inesperada força que o fazia obedecer a Camila, Matias seguiu- a. Os dois afastaram- se da multidão, e entraram na Igreja de Santo António. De lá viera a voz poderosa que impedira o assalto…
Ajoelhando junto ao retrato emoldurado de Santo António, tão conhecido pelos seus milagres, Camila ensinou Matias a benzer- se. Depois convidou- o a rezar com ela um pequeno acto de contrição. Ele lembrava – se vagamente de ter aprendido algo de parecido nos tempos em que sua avó o levava à catequese… depois sentados, lado a lado, a senhora rica e o homem pobre, Camila pediu- lhe que deitasse na caixa das esmolas o dinheiro que tinha nos bolsos. Matias, impelido de novo, por uma força irresistível que ele desconhecia, chorando, esvaziou os bolsos e obedeceu sem dizer palavra.
Em seguida, Camila abriu a sua mala, e tirando o porta- moedas e carteira de notas, deu- lhe tudo o que tinha…
Matias chorava e só agradecia, querendo beijar as mãos de Camila.
-‘ A Senhora é muito bondosa, perdoou- me… e ainda por cima dá- me tudo o que tem!!? Obrigado por ter pena de mim! Obrigado…’
-‘ Ouça, está ali um sacerdote! Vá falar com ele, conte- lhe a sua vida e peça que ele o confesse… eu ficarei a rezar por si, à sua espera ali junto à porta… talvez lhe possa arranjar um trabalho honesto ainda hoje …já falaremos!’
Camila sentou-se no último banco a rezar e Matias foi ter com o sacerdote … ao passar junto do retrato de Santo António , olhou para ele, como quem pede coragem e pareceu – lhe mesmo que ele lhe sorria…
Lá fora, um sol envergonhado espreitava e terminada a procissão, enquanto o Corpo de Jesus era de novo levado ao Sacrário, a multidão dispersava e os anjos voltavam ao céu. Dois deles, porém, distraíram- se e ficaram para trás, ali à porta da igreja de Santo António, alegremente festejando o encontro entre Camila e Matias.