A autora é Doutorada em Teologia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz.
Em Josemaria Escrivá encontramos uma espiritualidade laical que implica um aprofundamento dos dons recebidos no Batismo, que lhe permite apelar à santificação dos fiéis correntes na vida profissional, familiar e social. Na sua mensagem está implicado todo o Evangelho. Interessa-nos agora o que se refere aos Corações de Jesus e de Maria, aos quais teve grande devoção, como tantos mestres de vida espiritual que, ao longo dos séculos se uniram a essa tradição. Tudo o que escreve é fruto da sua vida espiritual, e ao mesmo tempo, profundamente teológico e humano.
NO CORAÇÃO DE CRISTO, A PAZ
O Coração de Cristo, Paz dos Cristãos é o único escrito do autor sobre este tema. Toda a vida de Cristo, desde a Encarnação, o seu andar redentor pela terra, até à entrega plena do Seu Coração trespassado, de carne, como o nosso, é o testemunho constante do mistério inenarrável do amor de Deus pelos homens[1]. Enfrenta o tema de uma possível crise com respeito a esta devoção, para esclarecer que a verdadeira devoção é todo um programa de conhecimento e amor, oração e vida. Em Cristo habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col 2, 9). E acrescenta: “a única superficialidade que pode haver nesta devoção é a do homem que não é integralmente humano e que, por isso, não consegue aperceber-se da realidade de Deus feito carne[2]. O Coração de Cristo, trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloquente à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas[3].
Ressalta a peculiar dignidade do mundo material e de todas as pessoas, de acordo com o seu espírito. Como Cristo fez o bem por todos os caminhos da Palestina, há que desenvolver em todos os caminhos humanos – família, sociedade, trabalho, cultura, descanso – uma grande sementeira de paz. Mas só se aprende a viver esse amor na escola do Coração de Jesus. Só contemplando o Coração de Cristo é possível amar, livres do ódio ou da indiferença[4]. Esta sementeira de paz e de alegria, de serenidade, não é alheia ao conselho de Jesus: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).
O autor considera o coração de Maria o melhor caminho para modelar segundo o coração de Cristo. Desde pequeno, renovava diariamente a Consagração a Nossa Senhora que tinha aprendido no lar familiar[5]. Estas devoções, unidas, cresceram nele e robusteceram-se ao longo dos anos. Repetia muitas vezes: “Doce Coração de Jesus, sede o meu Amor!, Doce Coração de Maria, sede a minha salvação!”[6]. Recebeu de seu pai a devoção à Virgem da Medalha Milagrosa, com os corações de Jesus e de Maria, que enlaça com as aparições da Virgem a Catalina Labouré em 1830[7]. Desde a juventude, Josemaria pressentia que Deus queria algo dele e dispôs-se a ser sacerdote. No seminário de S. Carlos, em Saragoça, havia uma representação do coração de Jesus inflamado de amor e coroado de espinhos, que o comovia profundamente[8]. Invocava os dois corações conjuntamente: Coração de Jesus, dá-nos a paz! Doce Coração de Maria, sede a minha salvação! [9].
O CORAÇÃO DO SENHOR É CORAÇÃO DE MISERICÓRDIA, QUE SE COMPADECE DOS HOMENS (Carta, 24-III-1930)
- Josemaria viu o Opus Dei, tal como o Senhor o queria, no dia 2 de outubro de 1928, em Madrid. Começou a procurar abrir esse caminho que Deus lhe pedia traçar na terra. A essa luz recebida de Deus sobre a vocação universal à santidade e a procura da plenitude de vida cristã no meio do mundo, através do trabalho profissional, se referiria como algo que havia brotado do Coração misericordioso de Jesus: “O coração do Senhor é coração de misericórdia, que se compadece dos homens e se acerca a eles. A nossa entrega, ao serviço das almas, é manifestação dessa misericórdia do Senhor (…) para com toda a humanidade. Porque nos chamou a santificar-nos na vida corrente, diária; e a que ensinemos os outros (…) o caminho para se santificar cada um no seu estado, no meio do mundo”[10]. É significativo que veja o núcleo essencial desta mensagem divina, como manifestação da misericórdia do Coração do Senhor, com os olhos e o coração postos na multidão[11].
A Bula de sua Canonização chama-lhe o santo da vida ordinária[12]. Desde que viu a sua vocação, começou a mostrar com a sua vida e os seus ensinamentos, que era possível e necessário santificar-se na vida corrente, convertendo os trabalhos mais comuns em oração, em serviço aos outros. Assim como via a missão recebida como fruto do amor do Coração divino, assim invocava com clamor incessante o Coração maternal de Maria: “Aqueles Rosários completos, rezados pela rua (…). Nunca pensei que levar a Obra para a frente levaria consigo tanta pena, tanta dor física e moral: sobretudo, moral…. Iter para tutum. Mãe! minha Mãe! Não te tinha senão a Ti! (…) Mãe, ¡Cor Mariae Dulcissimum! Oh, quanto acudi a ti!” recordava[13].
Nessa época tinha por hábito pessoal acudir ao amor misericordioso de Jesus e a Nossa Senhora como Medianeira. Na Santa Missa, depois da Consagração, recitava em silêncio, internamente, a oração ao amor misericordioso que aprendera na juventude e que continuou ao longo da vida: “Pai Santo, pelo Coração Imaculado de Maria, vos ofereço a Jesus, vosso amado Filho e me ofereço a mim mesmo Nele – com Ele- por Ele a todas as suas intenções e em nome de todas as criaturas”[14]. Durante a guerra civil espanhol, tornou-se-lhe presente de modo novo a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, desejando meter dentro do Coração divino, cada um e todos os que haveriam de formar parte da sua família sobrenatural[15].
Abrir os caminhos divinos da terra, como costumava dizer, não foi tarefa fácil. O que hoje é doutrina conhecida, na altura era algo de tal modo inovador na Igreja, que rompia os moldes jurídicos do Direito Canónico vigente[16]. Chegaram a dizer-lhe que tinha chegado com cem anos de antecipação. Só em 1947 o Opus Dei recebeu o Decretum laudis e só no ano seguinte puderam vincular-se à Obra pessoas casadas. Em 1950 puderam incorporar-se sacerdotes diocesanos à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz[17]. Por devoção ao Coração de Jesus, o Fundador pediu que a aprovação da Santa Sede tivesse a data dessa festa (16.VI.1950)[18]. Queria realizar a “sua Obra, a fim de que Cristo-Jesus efetivamente reine, porque todos com Pedro irão a Ele, pelo único caminho, Maria!”[19]. Chama poderosamente a atenção que não diga apenas que Maria é o caminho, mas o único caminho. O amor vivo a Cristo, a Maria, à Igreja e ao Romano Pontífice são características fundacionais do Opus Dei. Ressalta o desejo de servir a Igreja e o Vigário de Cristo, com fiel adesão ao Magistério[20].
O Papa Pio XII tinha consagrado a humanidade ao Coração de Jesus e mais tarde ao Coração Imaculado de Maria, e convidara as dioceses, paróquias e famílias católicas a realizar essa mesma consagração (Enc. Auspicia Quaedam, 1-V-1948). Nesse ambiente doutrinal e espiritual se situa a resolução de realizar a Consagração aos Corações de Jesus e de Maria[21].
Perante as incompreensões ao difundir a sua mensagem, as contradições e ameaças que pressentia, sentia a necessidade de se agarrar ao manto da Virgem[22]. E pedia que se repetisse a jaculatória Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum! Coração dulcíssimo da Maria, prepara um caminho seguro! E decidiu consagrar a Obra de Deus ao Coração Dulcíssimo de Maria, para deixar tudo nas suas mãos maternas: “farei a consagração do Opus Dei ao Imaculado Coração de Maria. (…). Vai ser uma consagração ambiciosa, porque consagraremos também os povos e nações que estão longe do seu Filho Divino” [23].
Realizou-a com palavras espontâneas no Santuário italiano de Loreto, no dia 15/8/1951, como relata numa das suas homilias[24]. Na sua epacta escreveu: “Consagração da Obra ao Dulcíssimo e Imaculado Coração de Maria” e “Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum!”[25]. Desde essa Consagração teve sempre nos lábios e no coração esta invocação, com a qual punha sob a proteção mariana o caminho (“iter”) canónico da Obra e a santidade dos seus membros. Posteriormente viria a acrescentar a estas intenções a oração pela Igreja – primeira de todas as suas intenções – em momentos tormentosos da sua história.
As grandes dificuldades económicas e angústias que supunham a edificação da sede central do Opus Dei em Roma levaram o Fundador a realizar una nova Consagração ao Coração de Jesus, a quem invocava, pedindo a paz: ¡Cor Iesu sacratissimum, dona nobis pacem! Fez a Consagração e encontrou a paz e o refúgio que pedia: “Concede-nos a graça de encontrar no divino Coração de Jesus nossa morada; e estabelece nos nossos corações o lugar do teu repouso [26].
Em homenagem de gratidão aos Corações de Jesus e de Maria, Josemaria Escrivá quis colocar nestes edifícios algumas lápides e jaculatórias que recordassem as Consagrações realizadas. A lápide com o texto da Consagração ao Coração de Maria, em versão latina, foi colocada à entrada da igreja prelatícia de Santa Maria da Paz como testemunho perene da sua intercessão maternal. Termina com a oração: “Coração de Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa; Coração dulcíssimo, imagem perfeita do Coração de Jesus, atende as súplicas que com piedade filial te dirigimos: inflama os nossos pobres corações para que amemos com toda a alma a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo; infunde em nós um amor grande à Igreja e ao Papa (…). Significativamente, afirma que o Coração dulcíssimo de Maria é “imagem perfeita do Coração de Jesus”. Seria difícil dizer mais!
Uma outra lápide une as duas Consagrações: “Cuando estas casas se levantavam em serviço à Igreja com uma abnegação maior em cada jornada, permitia o Senhor que de fora viessem duras e ocultas contradições, enquanto o Opus Dei, consagrado ao Coração Dulcíssimo de Maria a XV de agosto de MDCCCCLI, e ao Coração Sacratíssimo de Jesus a XXVI de outubro de MDCCCCLII, firme, compacto e seguro se fortalecia e dilatava. Laus Deo”[27]. Mas não se limitou às lápides comemorativas. Quis também que o primeiro Oratório que então se terminou fosse dedicado ao Coração de Maria; o retábulo é uma pintura da Virgem com o coração adornado com rosas brancas, figuração habitual na época. E o retábulo de um Oratório próximo do seu quarto é uma pintura do Coração de Jesus, em chamas de amor. Pensamos poder afirmar que se percebe aqui uma manifestação do “materialismo cristão” de que fala o autor, pela necessidade de sinais sensíveis que acerquem ao invisível. São testemunho de gratidão e oração, gravada em pedra. Traduzem a vida espiritual e materializam-na. A chave é a própria lei da Encarnação[28].
VAMOS, ATRAVÉS DO CORAÇÃO DULCÍSSIMO DE MARIA, AO CORAÇÃO SACRATÍSSIMO E MISERICORDIOSO DE JESUS
A Consagração ao Coração Dulcíssimo de Maria não foi o final, mas o início de outra etapa. Seguiu-se um novo período de intenso clamor de oração, que se prolongou por várias décadas: Coração dulcíssimo de Maria, prepara um caminho seguro! O Fundador repetia uma e outra vez e aconselhava a repetir esta jaculatória que foi ao longo dos anos uma continua oração corporativa da sua família espiritual. “Queres dizer a nossa Senhora aquela jaculatória que, em momentos de grande preocupação, tive de pôr na boca dos meus filhos, para a repetir, como se repetia, muchas vezes ao dia: “Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum”?[29]. Pôs assim em prática uma das suas convicções fundamentais: a importância primordial da oração. Rezou e pediu orações, expiação e horas de trabalho, em união com as suas intenções. Numerosos santuários marianos testemunharam a sua acesa e confiada petição: “Que a vossa oração chegue a Deus por meio do Coração dulcíssimo de Nossa Mãe Santa Maria”[30].
Durante os anos 70 – época de grandes turbilhões na vida eclesial – sofreu profundamente pela Igreja universal, que atravessava uma grave crise de fé e de disciplina[31]. Por essa época, S. Josemaria recebeu luzes do Céu, que o confirmaram na confiança inquebrantável no auxílio divino. Precisamente na festa do Imaculado Coração de Maria (23-VIII-1971) – antes da reforma do calendário litúrgico – escutou na alma uma locução divina, umas palavras que, com ligeira variação, procedem da Epístola aos Hebreus 4, 16: “Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae, ut misericordiam consequamur”[32]. Dias mais tarde, confidenciava: “Vamos, a través do Coração Dulcíssimo de Maria, ao Coração Sacratíssimo e Misericordioso de Jesus, pedir-lhe que, pela sua misericórdia, manifeste o seu poder na Igreja e nos encha de fortaleza para seguir adiante no nosso caminho, atraindo a Ele muitas almas. Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae, ut misericordiam consequamur! Que o tenhais muito pertinente, também para esta ocasião que a humanidade atravessa. em conta nestes momentos e também depois. Eu diria que é um querer de Deus que metamos a nossa vida interior pessoal dentro dessas palavras que vos acabo de dizer: (…) ide —repito— com confiança ao Coração Dulcíssimo de Maria, que é nossa Mãe e Mãe de Jesus. e com Ela, que é Medianeira de todas as graças, ao Coração Sacratíssimo e Misericordioso de Jesus”[33]. Parece-nos que ao ressaltar que é um querer de Deus, nestes momentos e também depois, S. Josemaria expressa que ir a Jesus por Maria não é uma devoção só para umas circunstâncias determinadas, mas algo permanente[34]. Esta observação parece muito também para esta ocasião que a humanidade atravessa.
[1] Cf. S. JOSEMARIA, Cristo que passa, (CQP) 162.
[2] S. JOSEMARIA, CQP, 163.
[3] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 165.
[4] Cf. S. JOSEMARIA, CQP,166.
[5] Cf. S. JOSEMARIA, Amigos de Deus, 296.
[6] ECHEVARRÍA, J., Memoria del Beato Josemaría Escrivá, Madrid: Rialp, 2000, 177.
[7] Cf. VÁZQUEZ DE PRADA, A, El Fundador del Opus Dei. Vida de Josemaria Escrivá de Balaguer, Madrid: Rialp, 1997 (I), 2002 (II), 2003 (III). Passaremos a citar AVP, I, 18.
[8] Cf. AVP, I, c.3,4.
[9] AVP, III, 227.
[10] S. JOSEMARIA, Carta 24-III-1930, 1, Arquivo Geral da Prelatura do Opus Dei (AGP), A.3, 91-1-3.
[11] Cf. AVP, I, 299.
[12] S. JOÃO PAULO II, «Bula de Canonização de S. Josemaria Escrivá», Romana, 35 (2002) 194-199.
[13] S. JOSEMARIA, AGP, P03 1978, 124.
[14] ECHEVARRÌA, J., Romana 61 (2015) 310.
[15] Cf. S. JOSEMARIA, Notas de uma meditação, 4-VI-1937, AGP, serie A-4.
[16] Cf. AVP, II, 327-328.
[17] Cf. REQUENA, F., «Presentación», SetD, 8 (2014) 9-20.
[18] Cf. AVP, III, 227.
[19] Cf. AVP, I, 306.
[20] Cf. S. JOSEMARIA, Forja, 633.
[21] Cf. CANO, L., «Consagraciones del Opus Dei», DSJEB (2013), 261
[22] Cf. AVP, III, 195-202.
[23] AVP, II, 120. Parece fazer referencia a Consagração pedida por Nossa Senhora à irmã Lúcia.
[24] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 12.
[25] S. JOSEMARIA, AGP, P02, XI-1983, 1181.
[26] AVP, III, 228-233.
[27] AVP, III, 203-211.
[28] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 164.
[29] S. JOSEMARIA, AGP, P02 V-1960, 46-47. Cf. AGP, P02 VIII-1983, 94-95, 846-847.
[30] S. JOSEMARIA, Carta 19-III-1967, 150, AGP, P02, VIII 2001, 744.
[31] Cf. DEL PORTILLO, A., «Lettera pastorale sull’avvenuta trasformazione dell’Opus Dei in prelatura personale di ambito internazionale», en Ateneo Romano Della Santa Croce (ed.), Rendere amabile a veritài, Città do Vaticano: LEV, 1995, 48-90 (55).
[32] Cf. ECHEVARRÌA, J., Carta del Prelado, 310-311.
[33] S. JOSEMARIA, AGP, P02 VIII 2001, 744.
[34] Cf. BURKHART, E – LÓPEZ, J., Vida cotidiana e santidad en a enseñanza de San Josemaría. Estudio de teología espiritual, Madrid: Rialp, 2010, I, 573ss. Agradeço muito a este último autor os valiosos conselhos recebidos e o cuidado com que reviu os escritos que lhe enviei.