Murilo Mendes foi dotado de uma inteligência múltipla; ele nasceu em Juiz de Fora e morreu Lisboa, foi um poeta, prosador e crítico de artes plásticas, inicialmente foi um católico fervoroso, o que não o impediu de se tornar um expoente do surrealismo da literatura brasileira e um crítico acirrado da sociedade de seu país. Enquanto jovem, ele tentou várias ocupações para seu provimento cotidiano, tais como farmacêutico, funcionário de banco e escrevente de cartório.
Nunca adaptou-se a nenhum desses empregos, porém, começou cedo a produzir textos e poemas que destacaram-se a seguir; contam-se suas obras poéticas em mais de vinte e cinco antologias, e ainda há três seleções póstumas e várias publicações inéditas. Pelos seus trinta anos, o poeta voltou sua atenção ao Rio de Janeiro e lá conviveu por um certo período, confraternizou com todos os artistas de então, mas a seguir instala-se fora do país, mais especificamente, em Roma. Mais adiante, ele encontra-se com João Cabral de Melo Neto o qual, como diplomata, o acolhe ao longo do exercício de seu serviço público em Barcelona e Sevilha.
É nesse período de vida que Murilo Mendes adota o surrealismo, então em vigor na Europa. Essa tendência cultural manifesta-se inicialmente na década de 20, ela foi fortemente influenciado pela psicanálise de Freud e dessa forma se enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa, sendo seu principal objetivo o de produzir uma arte que, segundo o movimento, estava sendo destruída pelo racionalismo. Mais adiante, entre as décadas de 40 e 50, o poeta volta ao Brasil e novamente elabora poesias tocadas pelo catolicismo, mesmo que ele, agora, permita-se desenvolver críticas culturais e sociais.
Entre as obras de Murilo Mendes, destacamos “Poemas”, de 1930, como uma das mais importantes. Sendo parte de “Poemas”, temos “Canção do exílio”: “Minha terra tem macieiras da Califórnia / onde cantam gaturamos de Veneza. / Os poetas da minha terra / são pretos que vivem em torres de ametista, / os sargentos do exército são monistas, cubistas, / os filósofos são polacos vendendo a prestações. / A gente não pode dormir / com os oradores e os pernilongos. / Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. / Eu morro sufocado / em terra estrangeira. / Nossas flores são mais bonitas / nossas frutas mais gostosas / mas custam cem mil réis a dúzia. // Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade / e ouvir um sabiá com certidão de idade!”
Observamos que o poeta passa a dedicar-se à reflexão do mundo contemporâneo e que a poesia está focada no contexto sociopolítico. Além disso, ele utiliza o humor e a sátira para apresentar a sua “Canção do exílio”; ele denuncia a invasão cultural estrangeira no Brasil, ele não se conforma em se aceitar tudo o que vem de fora, as frutas, os pássaros, os artistas, as ideologias… Ele tem consciência de que também temos coisas boas e que temos de valorizá-las; temos de comprar nossas frutas que são as melhores mas que, quando comercializadas aqui, custam muito.
Essa desigualdade faz o poeta sentir-se um exilado em sua própria terra. Na última estrofe, o poeta propõe uma forma de “abrasileirar” o Brasil, expressa pela vontade de “chupar uma carambola de verdade” (da terra, do Brasil) e de ouvir um sabiá cantar, mas que tenha uma certidão de nascimento que comprove a nacionalidade brasileira! Outra coletânea de destaque é “História do Brasil”, editada em 1932.
O autor a considera absolutamente à parte em sua obra, de tal forma, que ele dizia destoar do restante de seu trabalho, devido à “face brasileira” ou “carioca”, onde se pode entender o caráter gozador de nosso povo que já se habituou a rir de tudo, mesmo das calamidades.
Um bom exemplo desse livro “História do Brasil” é a obra-prima “Linhas Paralelas” que consegue captar, com imenso sarcasmo, o absurdo burocrático-administrativo do país: “Um presidente resolve / Construir uma boa escola / Numa vila bem distante. / Mais ninguém vai nessa escola: / Não tem estrada para lá. / Depois ele resolveu / Construir uma estrada boa / Numa outra vila do Estado. / Ninguém se muda para lá / Porque lá não tem escola”. Finalmente, detemos nosso olhar no poema “Cantiga de Malazarte”: “Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo, / ando debaixo da pele e sacudo os sonhos. / Não desprezo nada que tenha visto, / todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola. / Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos, / destelho as casas penduradas na terra, / tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando. / Desloco as consciências, / a rua estala com os meus passos, / e ando nos quatro cantos da vida. / Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido, / não posso amar ninguém porque sou o amor, / tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos / e a pedir desculpas ao mendigo. / Sou o espírito que assiste à Criação / e que bole em todas as almas que encontra. / Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo. / nada me fixa nos caminhos do mundo.”
O poeta, de fato, neste seu poema, adota como método de construção literária uma forma de reunião de elementos, de sentimentos, de pensamentos que, apesar de serem díspares, reúnem-se em uma escrita que vai do real ao imaginário, do sonho à matéria, do cotidiano ao eterno. Esta cantiga comprova ser Murilo Mendes um dos grandes poetas do século XX!
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