O cabo Eduardo se ligou bastante em mim, com frequência vem me perguntar se necessito alguma coisa. E sempre antes de me falar junta os calcanhares e bate a continência. E me chama de Tenente. Somos militares, ainda que de mentirinha. De uma certa maneira o feitiço virou contra o feiticeiro, não estava contando com essa.
Todos aqui esperam de mim uma postura militar. Mas isso é algo que eu nunca tive…
Eduardo foi quem me falou da “Varanda Tropical” no Porto Velho Hotel, um lance musical-dançante onde eu poderia me apresentar com o violão. Fui lá, o hotel é muito bacana e o pessoal de lá é gente fina. Mas tinha pouco público, talvez por ser meio de semana. Mesmo assim, toquei algumas músicas. O bolero Vereda Tropical eu mudei para Varanda Tropical.
Voy por la varanda tropical,
la noche plena de quietud…
Tinha convidado Yves e Pierre e eles vieram me escutar no hotel.
Depois ficamos conversando e, quando perguntei se podiam me levar como acompanhante na visita à aldeia dos índios, Yves me olhou espantado. –
Isso é impossível. Nós mesmos, ainda estamos aguardando a confirmação da Funai. Eles não nos vêm com muita simpatia – me explicou Yves. Esse órgão não protege os índios, até pelo contrário – ele continuou, depois de um gole de cerveja. O presidente da Funai, general fulano de tal, há pouco sugeriu a extinção do Parque Nacional do Xingu, alegando que o parque impede o progresso do país.
– Para eles o índio e sua cultura não importam – diz Pierre. Na visão deles o índio ainda não é nacional, ainda não faz parte do país. É preciso integrá-lo nos grandes projetos nacionais, como peão na agropecuária, como mão de obra barata na construção de estradas, pontes, etc. Só assim ele passa a ser brasileiro. Para o governo e para os grandes donos de terra índio bom é índio integrado. Ou exterminado. Progresso e desenvolvimento a qualquer preço.
– O Ministro do Interior deixou bem claro – diz Yves.
”Tomaremos todos os cuidados com os índios, mas não permitiremos que entravem o avanço do progresso.”
Os franceses me contaram que conseguiram passagem de ônibus para Guajará-Mirim, no 5º BEC. Amanhã vou lá, talvez eu consiga também. Dei a dica do depósito de remédios, fiquei de levar eles lá.
Aconteceu o que eu já vinha pressentindo. Acordei de manhã com tontura, forte dor de barriga, etc. Saí do meu alojamento ainda sonolento para ir em direção aos banheiros, que ficam do outro lado do pátio do quartel. Acontece que havia uma parada matinal, a Guarda em peso estava ali em formação. E justo quando assomei, vindo de dentro, a banda introduziu o hino nacional e todos começaram a cantar. Passei por todo aquele pessoal que estava em posição de sentido, com farda cáqui, coturno marrom e capacete de cor azul e listras branca e vermelha. E eu estava de cueca e camiseta, apurado por causa da diarreia.
Uma hora depois o comandante Tomate me chamou e me passou um sabão.
– Foi um escândalo! O senhor passa de cueca, na maior cara de pau, sem respeitar o hino nacional.
Claro, o coronel me deu o bilhete azul.
Peguei minhas coisas e me abalei para o 5º BEC. Mas não consegui nem passagem nem nada por lá. Em compensação descobri um campus universitário ao lado do quartel, com um pessoal do Projeto Rondon. E eram todos de Porto Alegre! Pronto. Muita curiosidade deles, muitas saudades minhas.
O Vitor (faz medicina) conhece o Elias, meu companheiro de coral da Ospa e das noitadas no bar Tortuga, rabisquei uma cartinha pra ele. Birita deles e o meu violão, entramos noite adentro. Até que chegou a hora de dormir e todos foram se retirando para os seus aposentos. Aí perguntei ao prof. Paulo se podia pernoitar naquela sala. Ele respondeu que não podia. Apesar de estar tudo vazio. O regulamento não permite, ele lamentou. Quando saí do campus a lua cheia banhou minha figura esquálida. Agora eu poderia compor uma valsa lenta no estilo do Anacleto de Medeiros, pensei caminhando. Com uma letra tipo assim:
Magro, com amarelão
Expulso do quartel da Guarda
Avançando na contra-mão
As lembranças na retaguarda…
Mochila nas costas e violão na mão, meus pés me levaram do projeto Rondon para a praça Rondon.
Fiz um balanço da situação. Não era a primeira vez que a noite me encontrava na rua. Aquele honesto cara de cu sem pestana da minha terra me fez um favor, me proibindo acampar no campus, pensei. Aqui fora na luz do luar é muito melhor.
Se eu quiser, vou até a velha locomotiva, lá deve ter lugar…
Ou vou bater na porta do Valdir… Não, não vou lá incomodar ele. Quando vi, estava na praça.
Forrei o chão com a rede de tucum, me tapei com o cobertor e abracei o violão.