O homem nasceu e criou raízes pelas barrancas do Rio Caí. Da sua casa ao rio duas quadras distavam; para moleque era como se nenhuma lonjura existisse. Todo guri começava pescando, com varinha fina de taquara, com uma pequena rolha servindo de boia. Os que já sabiam alguma coisa, negavam-se a assim pescar; era coisa de criança. O negócio era fisgar o peixe e senti-lo na ponta do anzol.
E foi assim que o meu amigo IRALDO COSTA DA SILVA, já septuagenário, lembrou das suas pescarias ao tempo de sua infância. Motorista de profissão, em viagens, sempre teve no rio Caí a estrada alternativa do lazer e da busca ao peixe. Lá pelos anos 50, quando ganhou o seu primeiro dinheirinho, foi comprar linha e anzol no armazém do seu Arlindo Günther.
Uma vara de taquara era fácil de encontrar; no pátio, com dois ou três golpes de enxada, as minhocas brotavam e logo uma latinha de massa de tomate era cheia, com um pouco de terra. E aí, rumo ao rio, atrás do lambari e do pintado. Com este último sempre muito cuidado, por causa do ferrão. Em pouco tempo inúmeros peixes eram fieirados e rumo a casa para limpar, fritar e comer.
Infelizmente o Iraldo nos deixou; quis a Providência Divina, através da qual o Poder Superior cria, recria e dirige tudo à plenitude, destiná-lo a um rio em nova dimensão. “A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim”, diz Mário Quintana.
A noite definitiva e última, ao Iraldo chegou. A nós outros, que ainda aqui permanecemos, restou a dor da partida; o último lamento em um simples escrito, agora registrado.
O rio a correr por dentre margens, abertas na terra secular, dividindo-a, foi testemunha ocular do nascimento de nossa cidade e coparticipe da chegada dos homens a colonizá-la, e se estabelecer no solo a sua margem direita. Assim a sesquicentenária Vila de São João do Montenegro ganhou dimensão, chegando pujante ao tempo atual.
Recordo que lá pelos anos 50/60 do século passado, o único lugar para banhos no rio era o Baixio Velho; ficava aos fundos da Tanac, nas terras onde depois funcionou a Hípica do Livino Pilger. Quando inauguraram o Balneário Municipal, a estrada para o baixio foi fechada. Ao tempo da Hípica o acesso foi novamente liberado, mas com baixa frequência.
O Iraldo contou duas verídicas histórias que tiveram o nosso rio por palco: da fábrica do Frigorífico Renner, até a escada fronteira ao prédio, mais para o lado esquerdo, existia uma esteira aérea, coberta, que transportava os produtos até os barcos. O pessoal chamava o local de “escada do Renner” ou “escada da banha” para pescar. Logo no início do empreendimento, o produto de maior venda era a banha (no início o frigorífico chamava-se Refinaria de Banha); pela esteira, nesse local, os barcos eram carregados e enviados para todo o país e estrangeiro.
Um pouco abaixo, no lugar onde a sanga (antes Kochenborger, hoje Montenegro) desemboca no rio, morava o Zé da Sanga, literalmente dentro da sanga e do rio, em uma casa edificada sobre túneis. O Zé ficava ao sabor das marés. Quando o rio subia, a casa levantava e baixa na vazante. A enchente ele tirava de letra.
A outra, tendo por local o cais baixo, a lenha empilhada era embargada em gasolinas em direção a Porto Alegre. Corria o ano de 1957 e uma mulher desconhecida atirou-se ao rio com uma criança nos braços. O socorro foi tardio; suicídio e homicídio consumados por uma desavença com o marido. Os corpos foram encontrados dias após, com a mãe abraçada à criança.
Um rio que salva vidas/ sacia a sede e a fome/ um rio em suas cheias destrói/ um rio que ceifa vidas… Um rio sempre a correr/ ao destino do seu estuário/ Nada o impede de continuar correndo.