(De manhã esperei duas horas para falar com o dono da empresa de ônibus Abunã, ele não chegava. Mas afinal veio e foi tudo muito rápido, me deu a passagem. E ao meio dia partimos.)
O ônibus avança penosamente, em meio a um oceano de poeira. Quase só leva viajantes de carona, são moradores da região e pelo que se vê, é quase tudo gente doente.
O próprio ônibus está mais prá lá do que pra cá, depois de andar alguns quilômetros ele enguiça.
Descemos e ficamos junto à uma cabana de palha de buriti, onde a dona Noêmia vende coisas de comer e beber.
Sento num tronco e fico conversando e tocando violão, à espera do motorista Telmo, que foi de volta à Porto Velho para providenciar outro ônibus.
Aí me vem a idéia de fazer um trabalho de registro interior, me concentrando por alguns momentos em alguém, filmando mentalmente a pessoa, dona Noêmia foi a primeira. Ela conta que os garimpeiros vinham beber na sua choça, eram simpáticos e gastadores.
O segundo foi um pretinho adorável, que sentou ao meu lado pra escutar o violão, o Nazareno.
Depois filmei mentalmente as três raparigas, as três mulheres do sabonete Araxá em pessoa.
Mas o último filminho não foi de pessoas, e sim do desmatamento. Ao longo de toda o percurso Porto Velho – Jacy-Paraná – Abunã – Guajará-Mirim a floresta foi queimada. O solo fica coberto de restos dos troncos calcinados e de uma fuligem negra – nada verde sobrevive -, de onde se ergue com tétrica majestade o tronco de uma árvore gigante, que o fogo não conseguiu derrubar, terá de ser cortado com a serra.
O tronco branco da árvore gigante queimada – liso como osso descarnado – sobre o escuro do chão me mostra como Tânatos pode ser obsceno. É o obelisco comemorativo do avanço do progresso, penso…
E o som, se o meu filme fosse sonoro, seria um grito lancinante que o fogo deixa, subitamente imobilizado no ar. O cenário me faz pensar no Frans Krajcberg, ele faria desta devastação brutal uma obra de arte.
Nisso apareceu o Telmo com outro ônibus e seguimos viagem.
No ônibus vinha uma velhinha magricela com o cachimbo na boca e a boca que era só palavrão, muito senhora de si e de atitudes zangadas sempre. Mas cada vez que o ônibus ia atravessar uma das muitas pontes, a velhinha fincava as mãos na cabeça e se agachava para não ver, gritando que íamos cair no buraco.
Ao seu lado ia o marido muito doente. E a filha, cuidando que o pai não caísse do banco.
E assim por diante, tinha também um cego que não ficava quieto e dizia na sua fala abolivianada:
– Cego es como yacaré. Yacaré no tiene língua. O que ponem na boca ele come.
Ou então :
– Dureza es namorar com Maria y casar con Tereza.
E ria alto, apesar de achar que, a ficar cego, melhor era morrer.
– Mas já, já, no.
Junto com o cego vinha o Ernesto, um menino loirinho que tossia muito. Do tamanho do Nazareno.
O cego nos conta que toda noite ele ensina o alfabeto ao Ernesto.
– Qual es a primera letra? Qual es a tercera?…
Chegamos à noite em Guajará-Mirim.
O motorista e o cobrador me convidaram para fazer serenata. Antes de sair, no escritório da empresa, fiquei dedilhando qualquer coisa e de repente o Telmo exclama:
– Essa é a minha música preferida, é do filme „História de amor“. Você não sabe a letra? Toca do começo que eu canto. E sem me esperar começou:
Ouçam vou contar
Mais uma história de amor
Que aconteceu…
Só que a música que eu estava tocando, apenas instrumental, era outra, é de um compositor brasileiro do tempo do Império, se chama „Ontem ao luar“. A música do filme é quase idêntica, parece plágio…
Telmo gostou demais de cantar com meu acompanhamento e insistiu pra mim ficar dormindo na empresa, me armou uma cama de lona.
Depois saímos pela noite – bastante fria – da “Pérola do Mamoré”, mas ninguém quis beber. Passamos na delegacia, onde trabalha o pai do cobrador. E ficamos por lá, de papo. O motorista contou o drama da sua vida de 27 anos: dois casamentos, trabalhos de toda espécie, da contabilidade à estiva e ao seringal. Seis malárias. É fogo na roupa.
Ontem à noite na praça, antes de dormir, fiquei matutando sobre as visões de mundo que se enfrentam nestes lugares. Os arigós nordestinos vieram para trabalhar nos seringais, sonhando com juntar um dinheiro e voltar pra sua terra. Agora a terra deles é aqui. Dona Chica, do pessoal do vegetal, expressou assim sua visão: morar na ribeira, e quando não tem comida, pega um peixe no rio, vai no quintal, pega uma mandioca e umas bananas. E vai se levando…