De manhã tomamos café e eu saí a caminhar. Fui até o rio, passei pela estação da “Madeira-Mamoré” e vivi horas de sol e poeira, balançando num encantamento sonolento, nesta boliviana cidade brasileira de fronteira. Debaixo de uma árvore uma senhora vendia laranjas e bananas enormes, que eles chamam de pacovi, o gosto se parece com o da jaca.
Agora estou aqui, escrevendo na igreja. Se o interior da igreja de Porto Velho lembra uma revista em quadrinhos, devido ao multicolorido dos pequenos vitrais, o desta aqui, em azul e branco com essas listras no teto, parece um pijama. Mas é acolhedora.
Há um grupo escolar ali na praça, com o nome Simón Bolívar. A maioria da população fala portunhol.
No cais, perguntei a um motorista se ele era boliviano.
– Yo? No senior!, respondeu ele indignado.
Ao meio dia Telmo e o cobrador partiram com o ônibus, de volta a Porto Velho.
Eu posso continuar dormindo na empresa, na cama de lona.
Fui pegar meu visto de entrada no consulado da Bolívia, mas não dão assim no mais. Só em dois dias o cônsul pode telegrafar para La Paz, para saber se pode dar o visto. E depois há mais três dias de trâmites, pelo menos.
No quartel da 6ª Cia. de Fronteira. Passei a saliva costumeira – num capitão Jairo – e fui convidado para o jantar.
Enquanto esperava, sentado no cassino dos oficiais, assisti uma cena que me deprimiu.
Um oficial entrou rindo muito e trazendo um menino índio, que tinham pegado na mata recentemente.
O indiozinho olhava para todos os lados cheio de medo, oprimido nas roupas que lhe impingiram, trazia sem jeito um picolé gotejando que lhe haviam pendurado na mão.
O oficial puxou ele até perto do televisor desligado e fez ele olhar para o aparelho, enquanto chamava os outros para virem assistir a cena. Então se formou um círculo de oficiais ao redor do índio e prenderam a televisão.
Na tela apareceu um animador de programa de auditório falando bem alto e o indiozinho se curvou como um animal acuado, e ficou ali paralisado, olhando o televisor, com o picolé derretendo na mão e uma expressão de terror no rosto abatido e pálido. Os oficiais ao redor batiam as mãos e riam à gargalhadas.
O menino índio parecia ter uns oito anos.
Fiquei pensando sobre o significado da cena que presenciei no cassino dos oficiais.
(Este cassino dos oficiais é como um oásis exuberante no meio de um cenário de pobreza, doença e devastação, que testemunhei no caminho até aqui. Aqui todos estão saudáveis e sorridentes, há comida e bebida da melhor qualidade e em abundância, contrastando com a absoluta miséria e carência de tudo da região circundante.)
A cena é uma reprodução em miniatura do confronto que deu origem ao nosso país, penso.
Ela seria um prato feito para um antropólogo.
Mas também um psicanalista teria muito o que dizer, menos sobre o indiozinho e mais sobre seus sequestradores. Suspeito que o motivo inconsciente por trás de toda a encenação é o desejo de autoafirmação por parte desses militares, como que mostrando para sí mesmos e para o mundo:
– Aqui estamos nós, detentores do poder e da civilização.
Mas a civilização ocidental mudou muito ao longo dos passados quase cinco séculos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) começa com um texto inspirado em J. J. Rousseau:
„Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.“
A cena que eu presenciei no cassino dos oficiais poderia servir de pano de fundo para os escritos de Rousseau, em que ele fala sobre o „bon sauvage“ e sobre a origem das maldades e dos vícios dos chamados civilizados.
“Oh que saudade que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida…“
Estes versos dos oito anos do Casimiro de Abreu, bem como os Direitos Humanos, não valem para o menino índio, sequestrado e usado para a repugnante diversão daqueles sorridentes oficiais.
(Tais rostos sorridentes me fazem lembrar um relato do E. A. Poe, em que um pesquisador vai visitar um hospital para doentes mentais no sul da França. Ele tinha ouvido falar dos novos métodos de tratamento do afamado hospício, e lá chegando, o que logo lhe chama a atenção são os rostos sorridentes dos receptivos médicos e enfermeiros. Mas há algo estranho nos tais sorrisos. No final se revela que os loucos haviam tomado o poder e trancafiado nas celas os verdadeiros terapeutas, onde os submetiam ao seu tratamento…)
Arrancado impiedosamente do seio dos seus familiares para viver no manicômio do País Grande, os oito anos do índio sequestrado serão a lembrança do terror que ele teve de enfrentar no passado, caso consiga sobreviver.