O capitão Jairo tinha me falado para voltar no dia seguinte. Eu voltei e quando cheguei no quartel eles estavam me esperando com um agente da Polícia Federal. Um abominável sorridentezinho, cabelo besuntado de brilhantina, que veio me identificar e interrogar. O abominável sequestrou todos meus documentos e o capitão me comunicou que eu teria de ficar esperando por ele no quartel. Quanto tempo? Ele não sabia.
Ou seja, estou detido para investigações, pensei.
Me deixaram sentado num canto do cassino dos oficiais e as horas foram se passando. Passou o almoço e graças a eles eu pude jejuar.
Passou a tarde e quando começou o alvoroço da janta no cassino, reapareceu o brilhantina com meus documentos, que ele entregou ao capitão.
O capitão veio com meus documentos na mão, mas não me entregou.
Em vez disso, me fez entrar numa sala contígua, fechou a porta e começou a me passar um sabão.
Me fez ver que a minha viagem era um grande desgaste que sofriam os meus estudos. E que esse negócio de saber como são as coisas no nosso país e como vive o povo, isso é coisa de estudantes de sociologia, que metem o bedelho em tudo. Estudante de engenharia fazer isso, é a primeira vez que via.
E me lançou um tenebroso olhar de viés.
Aí a porta da sala se abriu, entraram mais três oficiais e se postaram ao meu redor. – Melhor teria sido você se formar, o diploma é tudo na vida do homem –, me ensinou um deles.
– E você não deve ir na Bolívia, lá acabam de matar mais de cem estudantes, você tem muito cara de estudante -, falou outro engrossando mais o tom da voz. (Eu tinha dito ao cônsul que iria cruzar a Bolivia em direção às ruínas de Machu Picchu, no Peru. E os homens aqui já sabiam disso. Lentamente comecei a desconfiar que a minha ingenuidade havia passado dos limites.)
Enquanto me bombardeavam com aqueles e outros aforismos, os quatro oficiais iam rodando em volta de mim, numa manobra bem planejada, me pareceu. Aquele fogo cerrado, em ação conjunta com o jejum e com a debilidade em que me encontrava, foi me afundando num forte aturdimento.
Então os militares fizeram silêncio e passaram a me examinar minuciosamente, da cabeça aos pés e pelos lados. Me olhavam movendo verticalmente a cabeça, caminhando ao meu redor, exagerando os movimentos, se aproximando do meu pescoço pra me cheirar, dando puxões na minha roupa…
O que se seguiu não vale a pena contar. Melhor deixar pra lá, virar a página…
Parece que foi um divertido bate bola para os quatro oficiais, a bola era eu.
No final da sessão eu estava sentado no chão e ouvi o capitão, empostando um tom afeminado na voz: –
– Acho que o seu jantar está meio problemático… Pegue seus papéis e dê o fora!
Quando sai do quartel, avaliei que esse teria sido meu último estágio nas forças armadas.
E conferindo meus documentos vi que faltava a carteirinha de aspirante…
De volta para Porto Velho, no meu ônibus vieram também os dois franceses, que apareceram na saída de Guajará-Mirim. Ainda não tinham conseguido descolar uma expedição para a floresta.
O ônibus foi se movendo lento em meio à paisagem deprimente da mata incendiada.
Dentro de mim a coisa não se via melhor, havia um sentimento sangrando, como uma torneira correndo que a gente esqueceu de fechar ao sair. Fisicamente prostrado, me sentindo na encruzilhada de caminhos indefinidos, não me saía da mente a figura do pequeno índio sequestrado.
Para mim, um dos caminhos seria voltar ao sul, curar minhas doenças, me formar engenheiro. O diploma é tudo na vida do homem…
Família… Televisão… Futebol… Cervejinha no fim de semana… Deixar de lado as ideias. Cair na realidade.
Me enquadrar. Aí peguei no sono e comecei a sonhar.
Me vi atravessando uma ponte de construção recente, onde tudo era escuro, pavimento e balaústres. Ao chegar no outro lado vi uma placa preta enorme, com o nome do lugar escrito em vermelho: País Grande.
Ao lado da placa estava um Karmann-Ghia preto, com a porta aberta. Entrei, fechei a porta, no volante estava o capitão Jairo, com óculos escuros. Em silêncio, sem olhar para mim ele arrancou e disparamos por uma estrada asfaltada ladeada por plantações a perder de vista, o velocímetro marcava 140.
A estrada atravessava Porto Velho – uma cidade repleta de edifícios, com o fumo das chaminés mostrando a direção do vento – e seguia margeando o rio Madeira.
Paramos no lugar em que o barco Ferreira havia encostado, quando estava fazendo água.
Ali um esgoto a céu aberto trazia ao rio a urina e as fezes dos moradores das proximidades. Esparsas entre os edifícios se viam algumas árvores gigantes, restos da antiga floresta.
Então no sonho desapareceu o Karmann-Ghia com o capitão e diante de mim surgiu o João Policarpo, atrás dele se via uma igrejinha. Ele vestia um pijama azul de listras brancas e falou:
– Precisamos integrar o capitão no espírito da mata. Na consciência de Deus. Na beleza da Criação