Skip to content

A essência de todas as coisas

  • Julho 15, 2023
  • Cultura
  • José Rogério Licks

 

(Escrevendo enquanto espero por uma audiência com a esposa do Governador. Pra conseguir uma passagem de ônibus, a exemplo do Laurindo. Não sei se vai dar, estou já há bastante tempo na sala e há muita outra gente esperando. Caboclos doentes ou com familiares doentes, gente que quer viajar e não tem grana, vêm aqui pedir auxilio.)

Ao chegar de volta em Porto Velho os franceses me levaram para o lugar onde eles estão parando. É uma casa num conjunto residencial  que se está terminando de construir, para o pessoal da Embratel. Falei com o engenheiro francês responsável (Gerard) e não houve galho nenhum, ele me pôs à disposição um quartinho na residência. Acomodei minhas coisas no quarto vazio – só havia um colchão de casal – e fui tomar um banho. Quando saí do banho e estava vestindo uma roupa limpa, ouví que começou a chegar gente.

O salão do lugar encheu, mulheres e homens. E conversavam todos muito animados, não sabia que havia tantos franceses por aqui. Havia uma mesa linda cheia de comes e bebes, onde pouco depois me concentrei, pra me refazer dos jejuns recentes. Me aproximei do pequeno grupo em que estavam Yves e Pierre, este me apresentou aos outros e pediu:

– Tu veux pas jouer de la guitare?

Fui pegar o violão, e para fazer uma média com a cultura francesa introduzi a chanson La vie en rose.

Logo nos primeiros acordes a madame Marguerite – o nome eu fiquei sabendo mais tarde, no quartinho – se aproximou cantando, e tive que adaptar minha interpretação para acompanhar a performance dela, que cantava bastante bem.

Quando chegamos ao final, houve um aplauso curto e em seguida todos retomaram suas conversações, me esquecendo por completo. Guardei o violão e fui me dedicar aos comes e bebes.

Em algum momento o volume dos papos foi diminuindo e se havia formado um semicírculo em torno de Gerard.

De onde eu estava não dava pra saber do que ele estava falando, até que a voz da Marguerite apartou, perguntando qual a qualidade que Sartre e Sócrates tinham mais em comum. E respondendo em seguida, sufocada pelo riso:

– La laideur!

Ainda fiquei um tempo comendo, mas depois me aproximei para ouvir o discurso do engenheiro.

– Os números são a essência de todas as coisas…

Ele estava falando de como Sócrates e Platão foram influenciados pela filosofia de Pitágoras.

– Dez é o Número Perfeito, por ser a soma dos quatro primeiros: 1+ 2 + 3 + 4=10, ensinava o mestre de Samos.           Ele pode ser representado por uma pirâmide, em que a cúspide é o um e a base é o quatro. Um é o número do Sol, do pai, do impulso inicial. Dois é o número da Lua, do princípio feminino. Três é o número do filho, da criação. Quatro é o número da terra, da realidade material…

Em Samos Pitágoras tinha o seu semicírculo (Sócrates também, mais tarde em Atenas), onde realizava reuniões políticas. Mas foi obrigado a deixar sua cidade e se estabeleceu em Crotona, no sul da Itália, onde criou sua famosa confraria. Seus adeptos viviam em comunidade, incluíam as mulheres, eram vegetarianos e rechaçavam a propriedade privada. A irmandade pitagórica desenvolveu uma escola de pensamento que mesclava filosofia, ciência, misticismo e música.

– Um instrumento musical como o violão – falou Gerard olhando para mim – se constrói usando conhecimentos herdados dos pitagóricos. Uma dessas leis estabelece que duas cordas esticadas (cordas de violão, violino, cello…) soarão harmonicamente sempre que a relação de seus comprimentos for um número inteiro. Ao apertar em certo traste uma corda para formar com outras um acorde, o músico está criando um específico comprimento de corda vibrante, e a veracidade da descoberta pitagórica pode ser facilmente comprovada na execução dos sons flageolet...

(Seria impossível para mim entender direito a explanação do engenheiro, se não tivesse antes me debruçado sobre a fascinante teoria pitagórica das cordas harmônicas. Tive acesso a esse conhecimento graças ao maestro Abel Carlevaro, no Seminário Internacional do Violão, em Porto Alegre.)

Pitágoras estudou com os sábios egípcios, e durante a guerra do Egito com a Pérsia foi feito prisioneiro e enviado à Babilônia, onde supostamente aprofundou seus conhecimentos matemáticos, astronômicos e musicais.

Não só o famoso Teorema de Pitágoras, também a teoria matemática dos números irracionais, entre outras, é pitagórica.

E a imortalidade da alma… E a doutrina da transmigração…

Foi uma bela soirée. Me recolhi ao quartinho antes da festa acabar, estava cansado.

Então, quando tudo já estava em silêncio e eu ia pegar no sono, a porta abriu lentamente, fechou de novo e alguém veio compartir o colchão comigo. Era a madame Marguerite…

Tudo certo, consegui a requisição para a passagem até Cuiabá. Se quisesse poderia ter conseguido até o Rio, mas  não quis. (Me parece que o itinerário da minha viagem foi assumindo a forma de um laço. Se sigo até o Rio o laço se fecha. E na entrada de Porto Alegre está a estátua do Laçador vigiando… Um laço serve para prender… Não quero fechar o laço.) A audiência com a esposa do governador foi curta. Ela escutou meu papo, deu uma rápida olhada nos documentos e foi escrevendo a requisição, sem abrir a boca. Assim, devo partir amanhã às 6:30 rumo a Cuiabá.

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9