(Escrevendo enquanto espero por uma audiência com a esposa do Governador. Pra conseguir uma passagem de ônibus, a exemplo do Laurindo. Não sei se vai dar, estou já há bastante tempo na sala e há muita outra gente esperando. Caboclos doentes ou com familiares doentes, gente que quer viajar e não tem grana, vêm aqui pedir auxilio.)
Ao chegar de volta em Porto Velho os franceses me levaram para o lugar onde eles estão parando. É uma casa num conjunto residencial que se está terminando de construir, para o pessoal da Embratel. Falei com o engenheiro francês responsável (Gerard) e não houve galho nenhum, ele me pôs à disposição um quartinho na residência. Acomodei minhas coisas no quarto vazio – só havia um colchão de casal – e fui tomar um banho. Quando saí do banho e estava vestindo uma roupa limpa, ouví que começou a chegar gente.
O salão do lugar encheu, mulheres e homens. E conversavam todos muito animados, não sabia que havia tantos franceses por aqui. Havia uma mesa linda cheia de comes e bebes, onde pouco depois me concentrei, pra me refazer dos jejuns recentes. Me aproximei do pequeno grupo em que estavam Yves e Pierre, este me apresentou aos outros e pediu:
– Tu veux pas jouer de la guitare?
Fui pegar o violão, e para fazer uma média com a cultura francesa introduzi a chanson La vie en rose.
Logo nos primeiros acordes a madame Marguerite – o nome eu fiquei sabendo mais tarde, no quartinho – se aproximou cantando, e tive que adaptar minha interpretação para acompanhar a performance dela, que cantava bastante bem.
Quando chegamos ao final, houve um aplauso curto e em seguida todos retomaram suas conversações, me esquecendo por completo. Guardei o violão e fui me dedicar aos comes e bebes.
Em algum momento o volume dos papos foi diminuindo e se havia formado um semicírculo em torno de Gerard.
De onde eu estava não dava pra saber do que ele estava falando, até que a voz da Marguerite apartou, perguntando qual a qualidade que Sartre e Sócrates tinham mais em comum. E respondendo em seguida, sufocada pelo riso:
– La laideur!
Ainda fiquei um tempo comendo, mas depois me aproximei para ouvir o discurso do engenheiro.
– Os números são a essência de todas as coisas…
Ele estava falando de como Sócrates e Platão foram influenciados pela filosofia de Pitágoras.
– Dez é o Número Perfeito, por ser a soma dos quatro primeiros: 1+ 2 + 3 + 4=10, ensinava o mestre de Samos. Ele pode ser representado por uma pirâmide, em que a cúspide é o um e a base é o quatro. Um é o número do Sol, do pai, do impulso inicial. Dois é o número da Lua, do princípio feminino. Três é o número do filho, da criação. Quatro é o número da terra, da realidade material…
Em Samos Pitágoras tinha o seu semicírculo (Sócrates também, mais tarde em Atenas), onde realizava reuniões políticas. Mas foi obrigado a deixar sua cidade e se estabeleceu em Crotona, no sul da Itália, onde criou sua famosa confraria. Seus adeptos viviam em comunidade, incluíam as mulheres, eram vegetarianos e rechaçavam a propriedade privada. A irmandade pitagórica desenvolveu uma escola de pensamento que mesclava filosofia, ciência, misticismo e música.
– Um instrumento musical como o violão – falou Gerard olhando para mim – se constrói usando conhecimentos herdados dos pitagóricos. Uma dessas leis estabelece que duas cordas esticadas (cordas de violão, violino, cello…) soarão harmonicamente sempre que a relação de seus comprimentos for um número inteiro. Ao apertar em certo traste uma corda para formar com outras um acorde, o músico está criando um específico comprimento de corda vibrante, e a veracidade da descoberta pitagórica pode ser facilmente comprovada na execução dos sons flageolet...
(Seria impossível para mim entender direito a explanação do engenheiro, se não tivesse antes me debruçado sobre a fascinante teoria pitagórica das cordas harmônicas. Tive acesso a esse conhecimento graças ao maestro Abel Carlevaro, no Seminário Internacional do Violão, em Porto Alegre.)
Pitágoras estudou com os sábios egípcios, e durante a guerra do Egito com a Pérsia foi feito prisioneiro e enviado à Babilônia, onde supostamente aprofundou seus conhecimentos matemáticos, astronômicos e musicais.
Não só o famoso Teorema de Pitágoras, também a teoria matemática dos números irracionais, entre outras, é pitagórica.
E a imortalidade da alma… E a doutrina da transmigração…
Foi uma bela soirée. Me recolhi ao quartinho antes da festa acabar, estava cansado.
Então, quando tudo já estava em silêncio e eu ia pegar no sono, a porta abriu lentamente, fechou de novo e alguém veio compartir o colchão comigo. Era a madame Marguerite…
Tudo certo, consegui a requisição para a passagem até Cuiabá. Se quisesse poderia ter conseguido até o Rio, mas não quis. (Me parece que o itinerário da minha viagem foi assumindo a forma de um laço. Se sigo até o Rio o laço se fecha. E na entrada de Porto Alegre está a estátua do Laçador vigiando… Um laço serve para prender… Não quero fechar o laço.) A audiência com a esposa do governador foi curta. Ela escutou meu papo, deu uma rápida olhada nos documentos e foi escrevendo a requisição, sem abrir a boca. Assim, devo partir amanhã às 6:30 rumo a Cuiabá.