Longe de mim tentar uma avaliação psicológica de alguém. Mal posso seguir o “conhece-te a ti mesmo” socrático, mas é inevitável formarmos opiniões. Polidas ou brutas, refletidas superficialmente ou amparadas em leituras, em teorias e fosfato queimado, não dá para evitar: fomos concebidos para pensar. É vã a tentativa de tentar coibir isto, como o é o esforço para estancar o vazamento de um barril com inúmeros furos.
O processo de redemocratização do país depois de 1964 foi arrastado. Os militares eram cada vez mais achincalhados, fosse em círculos de amigos, fosse em publicações como o Pasquim. O nome, aliás, já diz tudo: meio de divulgação satírico, calunioso, impresso ou afixado em postes e paredes. A prática é antiga. Pedro II e os políticos de então foram atacados de forma inclemente pela publicação Diabo Coxo, cujos redatores eram Luís Gama e Sizenando Barreto, irmão de Joaquim Nabuco.
Ácida em sua irreverência, veiculada entre 1864 e 1865, criou o “Padre-nosso do diabo-coxo”: ¨Nossas dividas perdôa, / Visto sermos devedores; / Bem como nós perdoamos / Aos que são nossos credores”. De suas oito páginas, quatro eram de texto. As demais eram ilustradas por charges.
Ao encerrar seu primeiro ano de existência a direção da folha deixou um recado: “Com este numero terminamos o primeiro trimestre, e brevemente daremos principio ao segundo. Advertimos que no successivo seguiremos a mesma marcha que no primeiro, tendo sempre em mira a nossa divisa: corrigir divertindo. Acreditamos ter conscienciosamente cumprido com o programma por nós riscado anteriormente á creação d´esta folha, e disso nos ufanamos. Aos homens de espirito que olharam esta especie de critica com os olhos do progresso, da civilisação, agradecemos,- ás almas mesquinhas, que se honraram nestas paginas, desprezâmos”.
A caricatura, sinônimo de carregar em exagero, mistura humor e crítica. Não há como negar que pode contribuir para a denúncia de realidades inaceitáveis, que devem ser combatidas para que a sociedade não apodreça. Porque quando ela se encontra putrefata, então Nelson Rodrigues traduz sua receita: “O canalha, quando investido na liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: — ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: — ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem no mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto”. O título do texto, publicado em 1968, era “Assim é um líder”.
Superlativo, Nelson usava e abusava de caricaturas. Nossa história é uma pletora de tipos caricaturáveis e caricatos e não é preciso grande conhecimento da história pátria para perceber que da cultura, da seriedade e educação de D.Pedro II aos dias de hoje o abismo é profundo. Existissem hoje, o Diabo Coxo, e mesmo o Pasquim, não saberiam nem por onde começar. Não é à toa que o humor político – além do medo de processos por danos morais, por calúnia, por racismo e outros que tais,- encontra-se ferido de morte. Porque os personagens são caricaturas ambulantes e o crítico parecerá apenas descortinar o que todos já veem. O óbvio não tem graça.
O atual presidente é um exemplo rematado. Colocado contra a parede contra-atacou: “Se tem uma coisa de que me orgulho e que não baixo a cabeça para ninguém é que não tem nesse país uma viva alma mais honesta do que eu. Nem dentro da Polícia Federal, do Ministério Público, da Igreja Católica, da igreja evangélica, nem dentro o sindicato. Pode ter igual, mas eu duvido”.
O jornalismo nacional, em sua maioria, deixou passar. Os integrantes das instituições mencionadas, salvo manifestações em rincões distantes, bisaram. Como partiu de um cidadão condenado em várias instâncias por corrupção, a não reação à altura passou recibo. Aliás, não faz muito assisti uma entrevista com o mesmo político. Era visível o desejo de agradar o entrevistado, manifesto por perguntas nada incômodas, na linha do “levanta que eu corto”, do vôlei, e das caras e bocas, a sorrir diante de inúmeras fatuidades.
Nas últimas semanas os que ainda não economizam neurônios têm prestado atenção na resoluta defesa que o ocupante do Palácio do Planalto tem feito do regime venezuelano. É uma democracia! E tem mais eleições que o Brasil! Horas atrás, na Bélgica, voltou a se manifestar sobre o mesmo tema, valendo-se da mesma retórica.
Na outra ponta uma notícia mais importante. Na última cúpula de presidentes sul-americanos, Gabriel Boric, presidente do Chile, criticou o regime venezuelano, contrariando o anfitrião. Que desfilou em busca da liderança do Foro de São Paulo. Agora menciona Fidel Castro com frequência, referindo-se ao entendimento que tinha com o ditador cubano. Faz o mesmo com a figura de Chavez. Mortos ambos, com presidentes de esquerda latino-americanos de primeira viagem ou de países com pouca expressão mundial, o brasileiro se apresenta como o novo líder.
Por isto, talvez, tenha se admitido comunista, ainda que existam dúvidas acerca de sua ideologia, mal lobrigadas em suas ultrapassadas falas. Como circo mambembe, que só faz sucesso longe de maiores centros, onde nada melhor pisa e briga de galo lota estádio, as frases demagógicas ainda encontram eco aqui e acolá.
Há quem sonhava que ele seria indicado para o Nobel da Paz. Um engradado de cerveja, regando uma farofa com picanha, teria desarmado russos e ucranianos e o Nobel coroaria a vida de um migrante em pau-de-arara. Um Mandela dos trópicos. Não deu. Talvez Zelenski e Putin não gostem de cerveja. E não conheçam farofa.
Se o Nobel não premiará a megalomania, resta ocupar o lugar que um dia pertenceu a Fidel Castro, sem Sierra Maestra, farda, boné ou charutos. Que venha então a consagração pelo posto mais alto do Foro de São Paulo. Hoje mesmo voltou a criticar Boric, chamando-o de sequioso e apressado. Como pai que puxa a orelha do filho, disse que Boric erra por pressa juvenil e “falta de costume”. Como presidente do maior PIB da região, promete ajuda aos endividados esquerdistas que andam beijando a lona e, leal à causa, defende os que são acusados de ditadores. Tudo pelo êxtase do beija-mão com que sonha.
Em uma entrevista concedida à revista Veja, em 1969, Nelson Rodrigues cravou sua posição: “Eu sou um anticomunista que se declara anticomunista. Geralmente, o anticomunista diz que não é. Mas eu sou e confesso. E por quê? Porque a experiência comunista inventou a antipessoa, o anti-homem. Conhecíamos o canalha, o mentiroso. Mas, todos os pulhas de todos os tempos e de todos os idiomas, ainda assim, homens. O comunismo, porém, inventou alguém que não é homem. Para o comunista, o que nós chamamos de dignidade é um preconceito burguês. Para o comunista, o pequeno burguês é um idiota absoluto justamente porque tem escrúpulos”.
Nelson Rodrigues faleceu em 1980, quando o sindicalismo e suas greves no ABC paulista traziam fatos novos à cena brasileira. Suspeito que pegaria pesado com os apedeutas de hoje.