Retomando as anotações no meu caderno de viagem, depois de várias semanas em branco…
De Cuiabá um caminhoneiro me levou, primeiro a Rondonópolis – onde ficamos dois dias e participei de um programa musical de rádio, junto com uma dupla sertaneja do lugar – e dali a Campo Grande.
Em Campo Grande travei amizade com Nader e outros universitários. Por meio deles consegui fazer exames de saúde, que não revelaram grande coisa, além da subnutrição. (Me passaram amostras grátis de suplementos alimentares.)
Depois de uma semana por lá, fui pra estrada e uma carona me levou a Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai. Do outro lado é Pedro Juan Caballero, onde peguei um ônibus para Assunción.
Em Assunción eu dormia num corredor da casa de estudantes do Partido Colorado (partido do gen. Stroessner, que controla tudo por lá), tomava tereré com os estudantes e até participei de um trabajo voluntário deles, com camponeses no interior do país.
(O Paraguai perdeu a maior parte da sua população masculina na Guerra da Tríplice Aliança, um século atrás. E afundou em profunda desgraça. Fiquei sabendo detalhes dessa tragédia em um evento na casa da pintora Soledad B., que teve as pernas amputadas. Em cadeira de rodas ela realizou sua exposição de quadros dedicados ao grande herói nacional, Solano López.)
Mas o grande problema meu era a comida, no Paraguai há escassez de alimentos. Até que alguém me deu a dica do Exército da Salvação…
Fui lá, era perto do bairro chique onde estão as embaixadas, me abriu a porta uma senhora dos seus cinquenta anos. A irmã, depois de me ouvir pediu que eu ficasse esperando uns dez minutos no escritório, e quando voltou trazia um prato fundo com uma sopa fumegando. Foi o meu almoço daquele dia e dos demais que passei por lá.
Pelas manhãs eu ia na biblioteca do Instituto Cultural dos EUA, e certa vez vi um cara com um violão, fui puxar conversa com ele, se chama José Manuel Giménez e dá aulas de música no Instituto. Na noite daquele mesmo dia passei no apartamento dele, para um bate-papo musical. Ele toca jazz (além das guarânias) na melhor boate de Assunción e, quando me ouviu ao violão, sugeriu um concerto meu no Cultural, ele se encarregaria de acertar tudo com o diretor F. Jackson.
Dito e feito, duas semana depois dei meu concerto, com sala cheia, até ganhei uns trocados.
No final, várias pessoas vieram conversar comigo, entre elas dois universitários argentinos da cidade de La Plata, Pepe e Alejandro, que me convidaram a passar um tempo por lá com eles.
Alguns dias depois do concerto decidi ir para a estrada, e um caminhão me levou até a cidade argentina de Formosa. Ali à noite a coisa esteve feia, me sentia fraco e a tontura era tanta que tinha vertigens, parecia que caía num poço sem fundo. Estava deitado na rede, que amarrei entre duas árvores à beira da estrada, quando tudo começou. Procurei encarar, buscando outras posições, mas sempre voltava a despencar no vazio.
E cada vez que me movia se formavam longas horizontais azuladas, que deslizavam por meus olhos fechados, como caudas de meteoros.
Me deu um pânico e fui cambaleando para o restaurante que havia do outro lado da ruta nacional 11.
Só que não conseguia manter a cabeça erguida, ela teimava em cair no vazio.
Fiquei um tempo ali, com a cabeça derreada sobre a mesa, e percebi que empurravam uma xícara de café pro meu lado. Mas tive que esperar as vertigens diminuírem, então me aprumei um pouco e tomei uns goles. Me fez bem, senti que ia conseguindo aguentar a cabeça no alto.
Àquela hora da noite o restaurante estava vazio, os caminhoneiros dormiam.
Agradeci ao garçom e voltei pra rede, deitei e fiquei apertando uns pontos de massagem que aprendi em Cuiabá com o Arley, ele tinha um livro de medicina tradicional chinesa. A coisa foi melhorando e até pude dormir.
De manhã consegui um caminhão que me trouxe até Resistencia. O motorista trazia um embornal cheio de bifes à milanesa, me deu dois, foi o café da manha. Dá para perceber que estamos na Argentina, pensei…
Mas fiquei de sobreaviso e reconsiderando meus planos. Estava pensando em cruzar o Chaco em trem até perto de Salta, onde já existe estrada para passar ao Chile. Mas nesta fraqueza em que estou e com a grana escasseando meu plano foi por terra. E há outro problema, que dois australianos me contaram em Formosa: para poder entrar no Chile é preciso trocar muitos dólares por escudos chilenos.
Por isso decidi aceitar o convite que me fizeram e ir a La Plata, para a casa do Pepe, até as coisas melhorarem.
Avaliei que seriam cerca de mil quilômetros até lá, mas o tráfego na ruta nacional é intenso.
Após uma carona que me levou a Reconquista, uma outra me deixou em Santa Fé, e por sorte perto de uma casa de estudantes. Lá fiz amizade com Rogelio, que concluiu seu curso de Direito e vive seus últimos meses de moradia na casa de estudantes. Passei três dias lá, com muitas conversas sobre a realidade argentina. E me alimentando bem. Rogelio ficou contente de conhecer um tocayo seu brasileiro, e de ouvir meu violão.
Voltei pra estrada, me levantou um caminhão que transportava milho para Buenos Aires e me deixou perto da estação Plaza Constitución, onde tomei um trem para La Plata.
E aqui estou, na casa do Pepe, que divide o apartamento com Rulo e Ernesto. Me receberam muito bem.