Conversando com uma amiga, objetei um comentário dela sobre meu estilo de vida, argumentando que ela nunca havia estado na minha água-furtada.
– Como não? Sua memória está falhando! – ela retrucou. Estive lá e fiquei espantada, me perguntei se por acaso você havia descoberto uma maneira de fazer dinheiro com papéis velhos: por todo lado havia, de várias cores e tamanhos. E folhas amareladas dispersas pelo chão, e velhos arquivos de cartão…
– Você está exagerando! – me defendi. Mas ao mesmo tempo pensei na caixa de papelão debaixo da minha cama, que ela não viu… Onde deixei os papéis mais antigos, com escritos que ficaram esquecidos por décadas, e são como chaves para abrir os desvãos da minha memória…
Foi quando resolvi fazer uma inspeção desses papéis.
Numa noite ventosa e triste eu fazia fila com outras pessoas no aeroporto de Pudahuel, em Santiago do Chile, para um último procedimento antes de entrar no avião militar argentino que nos levaria para o outro lado da cordilheira e supostamente para uma nova vida, depois de um angustioso confinamento.
Havia motivos para uma discreta alegria, mas devido ao cansaço e a uma certa tendência minha que se havia intensificado na longa clausura em que havíamos vivido, um torpor sonâmbulo impregnava meus movimentos e tudo o que sentia e pensava.
Não éramos passageiros comuns, acabávamos de entrar no aeroporto custodiados por homens de uniforme, que nos apontavam seus fuzis e suas metralhadoras. Éramos portadores de salvo-condutos, mas só poderíamos entrar no avião depois que fosse concluída a vistoria minuciosa de tudo o que levávamos, pelos oficiais da força aérea chilena.
E eu levava muitos papéis na minha mochila…
A inspeção foi andando, chegou minha vez e depositei minha mochila sobre a mesa metálica.
Enfim, para isso estávamos naquela fila e não lembro de quem ia na minha frente, mas jamais esquecerei quem me seguia: era o J. Sanjinés, um boliviano mais conhecido por „Terror de Potosi“. (Ele havia ganho aquele apelido devido ao seu excessivo interesse pelas mulheres que estavam naquele lugar de onde vínhamos. Havíamos nos aproximado nos dias que antecederam à chegada da força especial que realizou a evacuação do nosso refúgio. E nos transportou lentamente, como num cortejo fúnebre, por ruas desertas e edifícios sem luz daquela cidade sitiada, imersa nas sombras e num silencio de além-túmulo.)
O oficial da força aérea chilena abriu minha mochila e agarrou o primeiro que viu: um caderno grosso que estava sobre algumas peças de roupa. Abriu o caderno e pôs-se a ler, aparentemente sem entender grande coisa do que estava escrito ali. E me intimou a revelar o significado de alguns textos, que lhe pareceram suspeitos.
Fiquei uns momentos em silêncio, agarrado de surpresa por um contratempo que não tinha previsto.
– São reflexões, poemas, relatos fictícios… – falei quase gaguejando. São esboços de um romance que pretendo escrever… – insisti um pouco mais firme.
Mas o capitão já tinha continuado a folhear as páginas do caderno e estacou em uma que continha um grupo de nomes e alguns endereços no Chile.
– Quienes son estas personas? – ele me intimou novamente, num tom mais agressivo.
Me fiz de desentendido e pedi para ver a página, para ganhar tempo enquanto matutava. Não podia revelar identidades e endereços do Omar e dos seus companheiros… Que haviam trabalhado com a equipe de Sócrates, dentro do Palácio La Moneda, até um dia antes dos bombardeios…
Sem esperar qualquer resposta minha, o oficial chileno virou as costas e foi depositar meu caderno numa estante que havia no fundo da sala.
Ao voltar me fez um sinal com a mão, para pegar a mochila e seguir andando. E foi revistar os pertences da refugiada Gal, que era a seguinte na fila, já que Sanjinés vinha só com a roupa do corpo.
Mas não arredei pé dali.
Fiquei parado, olhando meu caderno lá na estante, para sempre inalcançável…
Nele eu havia escrito uma espécie de diário do tempo que passamos refugiados na Embaixada da Argentina.
– Por favor, devolva-me meu caderno – pedi.
O capitão já estava inspecionando as coisas da Gal e não me deu atenção.
Sanjinés me empurrou, mas não me movi. Em vez disso insisti, num jeito provocador.
– O senhor não tem o direito de ficar com meu caderno! Se tanto lhe interessa, prometo que lhe mandarei um exemplar, quando publicar meu livro.
Então sim, o capitão virou pro meu lado, com uma peça de roupa íntima da Gal na mão e um olhar que não deixava antever coisa boa.
Foi um momento de suspense que poderia ter virado uma catástrofe, pois aquele oficial podia mandar fazer o que quisesse comigo. Por exemplo, que me trancafiassem no cubículo mais próximo, ou que me fincassem as baionetas nas pernas, como vi fazerem com um infeliz que pegaram no Parque Forestal, perto do rio Mapocho.
Essa lembrança cruzou por minha mente num relance, interrompido por Sanjinés, que se jogou sobre mim com toda sua força e passou a me chutar violentamente os calcanhares. E me sussurrou nos ouvidos:
– Camina hombre, piensa que en poco más estaremos libres!
Quando o avião finalmente decolou, a vista espectral de algumas luzes lá em baixo – com tudo o que elas não iluminavam – me desviou de um fato importante: o oficial chileno ficou tão concentrado em me interrogar sobre meu suspeito caderno que esqueceu de revistar o resto da mochila. Ora, debaixo de algumas peças de roupa havia muitos papéis, quem sabe até mais suculentos para o seu tipo de fome: cinco cadernos e uma quantidade de páginas avulsas, que eu havia escrito desde que saí de casa para uma pequena viagem.