Empurrei a grande porta de vidro e saí para fora. Me detive no primeiro patamar da escadaria dupla que leva para o jardim. O céu já estava azul, mas o sol ainda não dava as caras e uma penumbra úmida de fim de inverno envolvia as árvores. Desci os degraus restantes e fui andando pela direita, seguindo uma trilha de seixos do jardim. Que na verdade é um pequeno bosque eclético, de coníferas e palmeiras misturadas com uma paineira e outras espécies.
Entre bocejos e movimentos de braços e pernas para espantar o frio, pus-me a examinar a grande árvore no centro, cujo tronco se bifurca formando uma sólida forquilha, mais ou menos na altura do muro que circunda o terreno.
Foi a primeira vez que saí ao ar livre, depois do estrito confinamento.
Até então as portas de vidro ficavam fechadas e as centenas de refugiados tinham de permanecer nos salões ou na galeria o tempo todo, devido aos tiroteios, especialmente dos helicópteros que nos sobrevoavam constantemente. Mas eles desapareceram, faz já duas noites.
No grande salão as pessoas ainda dormiam, mas na cozinha, no subsolo da embaixada os uruguaios faziam o pão e preparavam o café. Em frente da cozinha é a lavanderia, e ali eu passo as noites, entre máquinas de lavar, dois tanques e roupas penduradas para secar. Me revezando com um chileno e um uruguaio na música, tocando violão para as pessoas que não podem dormir. De lá eu subi, da Peña de Lavandería, morto de sono, mas tinha de esperar que as pessoas fossem levantando. Então quase sempre sobra um colchão e posso dormir algumas horas.
Me acerquei do muro e comecei com os exercícios de respiração, como fazíamos nos ensaios e apresentações do grupo Manos, a companhia de teatro de que fui integrante. Tínhamos uma sala no Museo de Bellas Artes, dois dias antes do golpe militar foi nossa última função.
Estava nisso, respirando e lutando com o sono, quando um vulto escuro veio voando do alto, roçou na minha cabeça e estatelou-se no chão. Era uma bolsa…
Fiquei esperando, e logo apareceu sobre o muro uma cabeça masculina.
A figura se deixou cair e quando se ergueu do chão nos olhamos em silêncio, ambos procurando identificar onde nos tínhamos visto antes… (Logo lembrei, foi no edifício da UNCTAD, onde eu fazia refeições. Lá ele aparecia, quase sempre junto com brasileiros, mas ele é uruguaio. Cabeça é seu apelido, é um uruguaio que morou no Rio de Janeiro e fala um portunhol intragável, porém recheado de expressões da gíria carioca…)
Expliquei-lhe como entrar na mansão e chegar na cozinha, descendo a escada de mármore em caracol. Ele apanhou sua bolsa e foi para lá.
Essa é a maneira mais segura de entrar aqui, pelos fundos do jardim, que linda com o hospital San Borja. Mas só pra quem está em condições de pular o muro, de uns dois metros de altura.
A outra maneira é pela frente, por uma das entradas principais da Embaixada, vindo pela avenida V. Mackenna. Cada uma dessas duas entradas está vigiada por dois carabineros, e dois dias atrás presenciei ali uma cena dramática. Eu estava no quartinho vazio do primeiro andar, olhando pela janela, quando um homem musculoso de bigode se aproximou pela esquerda e abordou um carabineiro da guarda, num momento em que seu companheiro tinha ido conversar com os guardas da outra entrada.
Ao mesmo tempo pela direita se acercou uma mulher com dois meninos pequenos e quis entrar pelo portão aberto, mas o carabineiro bloqueou o caminho.
Aí o homem musculoso aplicou uma gravata e uma rasteira quase simultâneas no carabineiro. E a mulher se safou para dentro com os guris.
Foi tudo muito rápido, e quando os outros carabineiros se deram conta e vieram em socorro, apontando os fuzis para atirar, o homem musculoso já tinha largado o guarda e embarafustado para dentro da Embaixada.
Depois de passar pela identificação no escritório do Encargado de Negócios, os quatro novos refugiados entraram no salão grande, recebidos por uma massiva salva de palmas. E foram deixar as coisas que traziam consigo sobre a grande mesa de mogno das recepções diplomáticas, que tinha sido arrastada do centro para um lado do salão principal.
Aproveitando uma deixa, fui conversar com eles. O homem musculoso de bigode se chama Caio e também trouxe um violão. Caio é capoeirista…
O frio e o sono me venceram, voltei a cruzar a porta de vidro e fui me deitar sobre folhas de jornais, debaixo do piano de cauda negro, na ala à direita do salão principal. Dormi em seguida, e me despertaram as batidas de um prato de alumínio, no mármore da escada que sobe do subsolo.
– Grupo Cero!… Grupo Cero! – chamou o tupamaro Moncada de 18 anos, avisando que o grupo de mulheres grávidas, doentes e velhos já podia descer para o café da manhã.
Virei pro outro lado querendo dar outra cochilada, meu grupo é o 13…
Subsolo… Submundo… O cão Cérbero guardava a entrada do mundo dos mortos e despedaçava os que tentassem ir lá. Aqui é o inverso, o inferno é lá fora e os carabineiros guardam a entrada deste modesto oásis, que até tem palmeiras…
Escapando de um refúgio a outro, se alguém na rua me pedia as horas eu mostrava o relógio, estendendo o braço. Mas não abria a boca, pra não me denunciar como estrangeiro. O Luís, carioca de 19 anos e gay, que fazia parte do nosso grupo de teatro, pegaram ele na rua e foi espancado até morrer.