O afluxo de gente que vem se refugiar na Embaixada não para, já somos mais de quatrocentos. O espaço foi ficando exíguo, e isso faz as pessoas apelarem para a usucapião, o caso mais notório é o do Russo Desterrado e sua numerosa família. Se trata de um cinquentão com sua mulher, duas filhas e dois filhos. Acho que foram dos primeiros a entrar aqui, e o homem deve estar treinado em emergências deste tipo, pois parece que já as viveu em outros lugares.
Segundo o Cabeça, todos têm documentos brasileiros, mas o forte sotaque arrastado e a aparência fazem pensar mais numa origem eslava ou germânica. Eles tomaram posse do cantinho na ala direita, atrás do piano de cauda negro. Ali sempre tem um deles de sentinela, e para demarcar seu território juntaram várias cadeiras em forma de paliçada.
Foi disso que nasceu o apelido, e aquele canto passou a ser a Sibéria…
Por todo lado vem se dando esse tipo de consolidação.
Percebendo o rumo que as coisas estão tomando, abdiquei dos colchões e decidi me instalar definitivamente debaixo do piano, antes que alguém me tirasse o lugar. Forrei bem o chão com folhas de jornal e sobre elas estendi minha velha japona militar do CPOR. Devido à pouca maciez do leito, quase nunca durmo longa e profundamente.
Em compensação, é impressionante como se intensifica a atividade onírica.
Tenho tido sonhos em cores muito vivas, que são verdadeiros curtas-metragens.
Num deles vejo meu próprio corpo jogado no chão, sobre folhas de jornais manchadas de sangue. Estou fora do meu corpo e fico rondando em volta, sem conseguir tornar a entrar nele…
Noutro sonho estou na casa em que nasci, no armazém dos meus pais, chove muito, relampeja e vem um terremoto, as paredes começam a ranger e desabam, a casa inteira vem abaixo…
Num terceiro estou correndo nu, é um caminho de terra rumo da fronteira, mas não fica claro de que fronteira se trata. Na minha mão direita erguida – como um corredor levando a tocha ou o fogo simbólico – levo um prato de comida branco…
Pode que não seja muito sadio, mas estou meio empolgado com isso de dormir pouco e sonhar muito, por causa da intensidade e originalidade dos curtas, que eu anoto no caderno pra não esquecer. É uma espécie de laboratório do inconsciente, e a interpretação dessas amostras deve ajudar a redefinir meu caminho existencial, penso…
No forte terremoto que houve noites atrás se deu um significativo entrelaçamento.
Eu tinha juntado duas cadeiras na galeria – uma alternativa na falta de colchão – e dormia deitado nelas.
Aí comecei a sonhar que estava no convés de um barco, navegando em alto mar. Era um barco chinês, a julgar pelos ideogramas na bandeira tremulando ao vento. Ao meu lado havia um balde com água, me agachei e comecei a esfregar o chão do navio, era o meu trabalho ali. Então a água começou a dançar, e o balde e logo o convés inteiro passaram a chacoalhar com força, me fazendo perder o equilíbrio.
E acordei ouvindo um contraponto assustador. As paredes maciças desta mansão neoclássica de três andares estavam rangendo, se esfregando umas nas outras e produzindo um baixo contínuo infernal. E as vozes agudas das mulheres riscavam a escuridão gemendo, gritando, rezando…
Então ergueu-se no grande salão uma figura branca, como um fantasma, e foi postar-se entre as duas colunas jônicas, na passagem do salão para a galeria.
Era o escritor chileno A. D., envolto num lençol.
Com voz enérgica ele passou a explicar a lógica dos terremotos, e como comportar-se, acima de tudo não correr para fora do prédio, onde era muito maior o perigo de ser atingido por algum escombro.
Aqueles momentos de terror pareciam nunca terminar, mas então o tremor de terra foi perdendo intensidade.
Também A. D. foi mudando seu discurso, passou a falar do grande desafio que a existência implica.
E no silêncio pós-terremoto ele concluiu, em tom filosofal:
– A cada uno de nosotros le toca vivir su aventura personal en este mundo sombrío.
Tem um chileno que trabalha de empregado na Embaixada, faz as compras de suprimentos e utensílios necessários, coordena a limpeza, a manutenção e outras coisas mais.
É o Lúcifer, como o pessoal chama ele. Ele é um mordomo eficiente, outro dia o pessoal do ambulatório médico chamou-o por causa do surto de piolhos, e ele imediatamente saiu e foi comprar inseticida.
Seu trabalho está redobrado, mas ele sempre aparece com um sorriso rutilante de grandes dentes no rosto comprido e pálido de vampiro. Também, com seu mercado negro o Lúcifer está faturando uma boa grana.
Ele traz chocolates, cigarros Lucky Strike e sei lá o que mais, tudo bem caro e ninguém reclama.
Mas também leva e traz cartinhas de namorados e familiares que foram separados pelo cataclismo.
Foi assim que pude recuperar algumas coisas, que tinha deixado na casa dos franceses, quando vim para cá.
Os recados da namorada que o Lúcifer traz para o Ritinha são gaitinhas minúsculas, que ele vai abrindo e lendo, nas pregas do papel dobrado sobre si mesmo e escrito em letra miúda.
Ao meu ver, tem algo de bíblico o que está rolando aqui, a Embaixada é como uma Arca de Noé boiando cansada nas calmarias de um grande dilúvio.