– Grupo trece de comida! – gritou o Moncada batendo com o prato metálico na escada.
Desci, peguei meu café com pão e voltei pro meu lugar embaixo do piano. Fui mastigando devagar, lembrando o F.G., que deu uma dentada afobada no pão que os tupamaros fazem e o dente quebrou, deixando um buraco que ele tenta camuflar com a língua quando fala.
A nossa qualidade de vida tem melhorado, o Lúcifer nos conseguiu cobertores. Um cobertor tem muitas utilidades, a gente anda com ele por todo lado. O Sapateiro quis pegar a Gal na marra, ficou de tocaia e quando ela passou ele jogou o cobertor em cima dela e foi puxando. Aí ela gritou e veio o pessoal da Comissão de Seguridade e fez o Sapateiro soltar ela. Essa comissão está chefiada pelo Urso, um talento natural para a tarefa.
Eu estou nas comissões de limpeza e de cultura.
A Comissão de Limpeza está chefiada pela OEA, que é chamada assim porque beneficia todas as nacionalidades com seus favores eróticos, dizem. (Mas vai ver que é pura falação invejosa.)
Tem umas tupamaras bonitas que costumam se reunir para conversar, depois do café da manhã.
Me levantei e fui pra lá, no extremo esquerdo da galeria.
– Hola flaco! – me saudaram, encostadas na parede, sentadas sobre seus cobertores.
Uma delas se chama Emma e é psicóloga analista, coisa assim.
Contei a ela espontaneamente meus sonhos, e ela fez uma interpretação.
– O que você viu em sonhos é a morte do seu ego – ela começou. Você viu seu corpo inerte no chão, sobre folhas de jornais manchadas de sangue. Você está fora dele e quer tornar a entrar no seu corpo, para que tudo fique bem. Mas não consegue, porque isso não é mais possível. Esse que você era antes morreu, e isso aconteceu com todos nós, aqui é a Casa dos Mortos… Todos nós viemos ao Chile para ajudar na construção de uma sociedade mais harmônica e esperançosa. E no Chile os militares respeitam a lei, não são golpistas, diziam. Mas os militares deram o golpe e desbarataram tudo facilmente, porque o projeto de poder dos partidos políticos não tinha bases reais. Era um projeto de palavras, muitas palavras, um palavrório sem fim… São as palavras que estão nas folhas de jornais do seu sonho. Que estão manchadas de sangue, do sangue derramado nas ruas, nas poblaciones, nas fábricas… Mas você não morreu, isso que está rondando seu corpo e não se vê, não tem materialidade, é sua consciência mais profunda, é seu self, é você e…
– Agora lembrei que no final do sonho aparece uma irmã minha! – interrompi afoito.
– Claro… É seu lado feminino… – ela continuou com um meio sorriso complacente. É o lado que está treinado em aceitar a realidade sem fantasiar demais. É quem limpa a sujeira, joga fora os cacos, recolhe o que sobrou de aproveitável e procura criar condições para um novo começo… Mas deixa eu comentar o outro sonho, que bate na mesma tecla. A casa da sua infância vem abaixo. É a morte das suas raízes, do seu grupo, seu coletivo. O que temos aqui na Embaixada é um coletivo transitório, sem chance de perdurar, criar raízes. Você nunca ouviu falar da planta sagrada dos druidas, o gui? Os druidas se vestiam de branco e usavam tesouras de ouro para colher o gui, uma planta que não tem raízes no chão, mas possui um grande poder de cura. Essa planta é levada por um pássaro a uma árvore hospedeira e passa a viver nela. Você tem que aprender a viver assim, sem raízes. Ou criar raízes no ar, como muitos já fizeram. É assim que eu vejo a coisa, é isso que o seu inconsciente está aconselhando.
Emma fez uma pausa pra tomar um gole de café e continuou.
– Tem um detalhe importante, no sonho em que você ronda seu corpo querendo entrar nele e recobrar o impulso vital, que já não há. O sonho parece mostrar que você ainda não se convenceu, ainda não está aceitando a ideia da morte, que é o centro da experiência que estamos vivendo. Você deve trabalhar essa contradição interior. E é por isso que aparece a sua irmã. É o seu lado feminino que deve dar o tom, daqui por diante. Deixe de lado a impetuosidade inconsequente, recolhe o que de bom lhe restou e procura criar um novo caminho. Não tem o outro sonho, correndo desnudo em direção a uma fronteira indefinida? O caminho não está claro para ninguém, cada um de nós tem de criá-lo com seus próprios recursos. Mas as cores vivas dos seus sonhos são um bom sinal, as suas chances são boas.
Emma me lançou um olhar levemente irônico e voltou ao seu café, nada mais disse.
Ainda fiquei ali uns momentos, mudo e atônito com o que ela havia falado.
Então agradeci e voltei para o meu cantinho embaixo do piano.
– Rapaz… – pensei comigo mesmo -, já toquei muito a Moda da Pinga, onde diz: prosa de mulher nunca dou valor…
Mas tenho que tirar o chapéu pra Emma, o que ela falou é o dedo na ferida.