Os bombardeios na población Lo Hermida aumentaram e a qualquer momento um comando militar viria allanar o apartamento da Eni. Éramos muitos ali, e os vizinhos logo denunciariam, por isso antes que Eni me pedisse resolvi partir novamente para outro lugar. Como não sabia para onde ir, decidi voltar para o centro de Santiago, assim que aliviasse o toque de queda. Quando estava entrando no micro-ônibus lembrei dos franceses, que moravam nas cercanias do Hospital San Borja. Dominique havia sido meu aluno de violão, era engenheiro e trabalhava para a ONU, junto com ele moravam sua mulher e uma chilena que também me conhecia.
Desci numa parada da avenida Vickuña Mackenna e fui caminhando até a casa deles. Seria minha quarta morada em menos de uma semana, naquela odisseia escapando da fúria dos militares.
Foi Jimena quem primeiro me falou dos rumores que estavam circulando, sobre o assassinato de Victor Jara. Que tinha sido torturado no Estádio Nacional e depois fuzilado à queima-roupa com muitos tiros. E seu corpo foi encontrado jogado numa sarjeta, num bairro pobre perto de um cemitério, avisaram sua mulher.
Jimena tinha recebido a notícia ao sair para comprar comida, de uma pessoa muito confiável.
Quando você anda de um lado a outro, sabendo que sua vida pode terminar a qualquer momento, uma espécie de pragmatismo beirando a indiferença impregna seus sentimentos. E você não fica procurando sovaco em cobra, pelo menos no meu caso. Mas fiquei arrasado com o que Jimena me contou, e fui sentar num canto onde desatei no choro.
No começo do inverno passado eu tinha retornado de um tour pelo sul do Chile, onde participei de festivais de música. (No festival de Valdivia compus a canção „Cruzando a Cordilheira“: https://youtu.be/ywj8-oTis-s )
Aí caminhando por Santiago, por um acaso tinha reencontrado o Jorge B., poeta argentino que conheci na comunidade de El Azul, nas faldas da montanha perto de El Bolsón, sul da Argentina.
Jorge me falou com entusiasmo de um cantautor chileno, e me propôs irmos ouvi-lo naquela noite.
Era na peña (local com música ao vivo) que uma filha da Violeta Parra mantinha, na rua Carmen.
Não tínhamos dinheiro para os ingressos, mas Jorge me assegurou que haveria uma pausa no meio da apresentação, e depois a entrada seria livre.
Victor Jara irradiava uma grande serenidade, com sua voz cálida, suas mãos carnudas e seus negros cabelos encaracolados. E me chamou a atenção a sonoridade do seu instrumento e o jeito de tocar, que contrastavam com a maioria dos músicos que tinha ouvido no Chile até ali.
Quase todos tocavam com rasgueados rápidos e agressivos, usando o corpo ungueal para produzir o som. Victor pelo contrário, usava a polpa dos dedos para tirar harmonias suaves, cheias de harpejos dolentes. Imediatamente senti uma afinidade ao escutá-lo, era mais parecido com o violão brasileiro.
Algum tempo mais tarde, quando estava morando no taller do luthier Lucho, também na rua Carmen, entrou um rapaz atraído pelo som do meu violão, de quem fiquei muito amigo. Ele vestia sempre um sobretudo azul que ia até os joelhos, muito elegante mas já bem puído, me dava a impressão de ser um conde arruinado, sem perder a pose.
Ele era da casa na Peña de los Parra, namorava a Carmen Luísa, foi ele que me apresentou ao Victor Jara.
Estudei e incorporei ao meu repertório muitas canções, por exemplo „Te recuerdo Amanda“ e „El derecho de vivir en paz“. Ou „Mis manos son lo único que tengo“, uma composição em que Victor usa expressões típicas da fala dos huasos do sul do Chile, que segundo o escritor Nicolás Palacios não é um dialeto e sim o espanhol original, tal como o falavam Pedro de Valdívia e seus comandados, ao conquistar o país andino.
Porque tiveram que esmagar com a coronha do fuzil as mãos de um músico que nunca pegou numa arma, estraçalhar o corpo de um homem indefeso cujo único crime foi fazer canções para as pessoas mais pobres?
Seria tão descomunal a raiva que os cães de guarda dos poderosos tinham do Victor…
E não só dele, se supõe que só no dia 11 de setembro foram assassinadas 3.000 pessoas, nas mais diversas circunstâncias. Houve um caso em que uma moça que havia recebido asilo na Itália foi presa e torturada até morrer. Depois infiltraram o cadáver num nicho da embaixada italiana. E mandaram os jornais espalhar a notícia falsa de que ela havia morrido lá dentro numa orgia sexual dos refugiados…
A Itália desmentiu essa fake new e rompeu as relações diplomáticas com o Chile de Pinochet.
Nenhuma fera deste planeta é capaz da ferocidade até então desconhecida que os militares chilenos puseram em cena, em mais de 40.000 casos de torturas e assassinatos.
Nenhum dos flagelos que o poeta Dante concebeu para descrever o Inferno é capaz de reproduzir o grau de brutalidade, sanha assassina, corrupção e baixeza moral asquerosa escancarada aos olhos do mundo na ditadura militar.
E no entanto, Salvador Allende – cercado por tanques e pela fuzilaria de centenas de soldados, bombardeado pelos jatos Rojas Sandford – pede aos últimos que o defendiam que abandonem o Palácio e que cada um se proteja e cuide de sua vida. E transmite suas últimas palavras falando de paz e de confiança em dias melhores para o Chile…
(Nunca consegui pensar nisso sem chorar. De admiração pela dignidade e pelo sacrifício de um homem que pagou com sua vida, mas não traiu seus princípios e seu compromisso. E de indignação pela repugnante sordidez e pela covardia de que é capaz o ser humano quando tem as armas de extermínio em seu poder.)