Estava na fila de uma mercearia. No balcão do caixa uma menina empunhava algo que julguei ser um frasco de detergente e um sabão. Não vi seu rosto, mas seus dedos pequenos e sua baixa estatura antecipavam que não devia ter mais do que doze anos, a mesma idade de minha filha caçula.
Depositou sobre a bancada uma nota amarrotada e moedas, a maioria das quais de baixo valor. A atendente passou a contá-las e de relance imaginei que não cobririam o valor de sua mais que modesta compra. Puxa moeda de cá, arreda de lá e a funcionária sentenciou: faltam noventa centavos. O fez com delicadeza, mas nem assim a cena era menos constrangedora. O cidadão à minha frente informou que pagaria a diferença. A menina agradeceu mas, envergonhada, mal virou o rosto e logo ganhou a porta.
Por aqueles dias acabara de concluir a leitura de “Caminhante entre dois mundos”, resumida autobiografia de Ernesto Bernhoeft, pastor episcopal que residiu em Montenegro entre 1950 e 1962. Retornou inúmeras vezes a esta cidade, mas não lembro de tê-lo conhecido, o que acabei fazendo, ainda que pouco, através das páginas de seu opúsculo.
Decidido a criar um educandário gratuito para os mais pobres, buscou ajuda financeira pelas mais variadas formas, inclusive participando de um desafio radiofônico num programa intitulado “Do zero ao infinito”, respondendo sobre Leopoldina, a primeira Imperatriz do Brasil, mulher com formação primorosa.
Bernhoeft era alemão, nascido em Güstrow, norte de uma Alemanha já convulsionada pelo nazismo, e aportaria no Brasil com quase vinte anos. Estudou nossa história como poucos nativos o fazem e admirou D.Pedro II, “de quem os historiadores diriam que havia fundado a maior democracia da América”.
Numa quadra vergonhosa, em que alguns governantes hipócritas, falsos democratas, pretendem criminalizar quem os desanque, tenho em mãos “Pedro II através da caricatura”, de Araken Távora. Retratado de forma normalmente jocosa, “divertia-se muito com as caricaturas e charges a propósito de todos os seus atos. Não faltaram conselheiros e aduladores, pedindo-lhe que desse fim àqueles excessos. O grande Imperador, embora se irritasse, momentaneamente, com alguma injustiça, teve a sensibilidade para perceber que as caricaturas jamais invadiram a intimidade de sua vida particular ou a de sua família. E foi mais longe, ainda, na sua absoluta identificação com a alma popular. Ele sabia que o público se divertia com as caricaturas”. Nascido no seio do absolutismo, teve a categoria que muitos energúmenos de hoje sequer suspeitam, ainda que se digam pais dos pobres, uns, e guardiães da democracia, outros.
Mas retornemos a Montenegro. Imbuído de seus objetivos humanitários, Bernhoeft logo considerou que o trabalho assistencial parecia urgente e apelou para a construção de um abrigo, “mas este tipo de assistência nunca cumprirá ou resolverá o problema. A tendência desse serviço sempre será um paliativo que facilmente vicia os carentes”. Percebeu então que nosso grande problema era a educação, que deveria ser acessível a todos.
Bernhoeft deixaria Montenegro e mudar-se-ia para Londrina, onde seguiria desempenhando suas funções religiosas. Registrou que sua despedida foi duríssima, deixando para trás um sonho educacional interrompido: “Até hoje eu me pergunto, por que pessoas que se dizem interessadas na solução de problemas sociais e simpatizantes do próprio Marxismo, faziam tanto esforço para anular uma proposta tão concreta e promissora como o nosso colégio. Intimamente eu lamentava que me estavam faltando as forças, mesmo que hoje, ao escrever estas palavras, eu saiba que contra as forças malévolas da corrupção e ambição ninguém poderá vencer, a não ser que se iguale nas intenções aos falsos idealistas deste mundo”.
Quase cento e quarenta anos depois da deposição de Pedro II, mais de seis décadas passadas da criação da escola Jacob Renner em Montenegro, a desigualdade no Brasil segue vergonhosa, o assistencialismo parece edificado sobre alicerce indestrutível e o exército de boçais e desonestos parece predominar nas instâncias da república.