– Não permitiremos que o Chile vá por água abaixo! – exclamou Henry Kissinger numa chamada urgente ao chefe da CIA Richard Helms, depois da vitória de Salvador Allende em 4/9/1970. E poucos dias depois o próprio R. Nixon reforçou:
– A eleição de Allende é inaceitável. Vamos fazer a economia chilena afundar! (Os documentos desclassificados do gov. americano e P. Kornbluh escancaram a grande conspiração envolvendo CIA, Pentágono, ITT etcetera, já de anos antes.)
– Nosso maior temor é que Allende se consolide e sua imagem no mundo se torne um êxito! – expôs Nixon ao seu Conselho de Segurança Nacional dois dias depois do “Chicho” assumir. Nixon ordenou derrubá-lo com o Projeto FUBELT, mais conhecido como Track II. E ofereceu dinheiro ao general E. Garrastazu Médici para influenciar os militares chilenos, lhe perguntou na Casa Branca em dezembro de 1971 se eles eram capazes de derrubar Allende.
– Sim, e o Brasil está trabalhando neste sentido! – respondeu Médici.
– Vamos estrangular os recursos chilenos! – convocou Henry Kissinger. E os bancos congelaram as contas e os barcos que transportavam a produção do cobre chileno foram impedidos de aportar. E a CIA pagava em dólares para os caminhoneiros chilenos não trabalharem e para os donos de mercados esconderem seus produtos, provocando a escassez de alimentos e o desespero da população.
Num primeiro momento a conspiração para “deter o comunismo” consistia no financiamento massivo das campanhas dos oponentes de Allende. Como não funcionou, conceberam o plano para impedir o Presidente de assumir: sequestrar o gen. Schneider, chefe das Forças Armadas e autor da “Doutrina Schneider”, que pregava o apego à ordem constitucional, o respeito à vontade cidadã e a não intervenção política por parte do Exército. Mas o sequestro falhou e Henry Kissinger bufou e chamou os militares chilenos de incompetentes. Três dias depois tentaram novamente, Schneider resistiu e foi morto a balaços, o grupo terrorista era chefiado pelo gen. Viaux. Um tiro que saiu pela culatra, pois só fez aumentar o prestígio de Allende, que pôde assumir e começar com seu programa de transformação do Chile.
Porém o terrorismo financiado pelos bilhetes verdes não parou de crescer, e o grupo de ultradireita Pátria y Libertad mantinha sem problemas seu escritório numa rua central de Santiago, enquanto assassinava e explodia com bombas pontes, oleodutos e torres de alta tensão. Seu chefe Roberto Thieme, escondido na Argentina, pregava abertamente a guerra civil. (Não houve guerra civil e sim um massacre, porque os defensores de Allende apenas possuíam coquetéis Molotov e algumas poucas armas de pequeno porte.
Nos dias que se seguiram ao golpe nós ouvíamos aqui e ali um atirador solitário emboscado em alguma janela da vizinhança, seus tiros esparsos me faziam lembrar os fogos de artifício de São João na minha cidade natal. Até que massivas rajadas de metralhadora acabavam com ele.)
Em março de 73 se realizaram eleições para o Congresso chileno, com o país em grandes dificuldades econômicas e sacudido por atentados. Ainda assim a Unidad Popular pôde obter melhor votação do que na eleição para presidente, frustrando os planos de desbancar Allende por via democrática. Então em junho um grupo de tanques cerca o Palácio de La Moneda e exige a renúncia do Presidente, porém o gen. Prats consegue rapidamente controlar a rebelião. (Esse general legalista foi assassinado junto com sua esposa algum tempo depois, pelos serviços de inteligência de Pinochet.)
Àquela altura todo mundo sabia que a conspiração rolava e se havia instalado um cansaço geral, uma resignação e um desinteresse pelo tema. No meio desse clima ficamos sabendo que Allende iria convocar um plebiscito, para que o povo chileno decidisse se ele devia continuar ou renunciar, seria no dia 11 de setembro. E foi convocada uma manifestação de apoio ao Presidente para o 4 de setembro.
Vim caminhando sem pressa do restaurante da Caixinha na avenida Providencia, tinha ido lá receber meu último salário. Ainda tinha bastante tempo, a manifestação seria no final da tarde e quis rever o Parque Gran Bretaña, onde passei muitas noites nos meus primeiros tempos em Santiago. Caminhando no verde intenso daquele lugar me veio um sentimento estranho de despedida, que atribui à decisão de me demitir da Caixinha.
No Parque Florestal dedicado ao poeta Rubén Dario subi os degraus de pedra da Fuente Alemana e me agarrei no bronze frio do barco levando as figuras alegóricas dos trabalhadores chilenos, dos mapuches, da mulher, da mineração, da riqueza do mar. Para onde seguirá meu barco, pensei com meus botões…
Segui andando e ao passar o Cerro Santa Lucía a figura de um homem de meia-idade me chamou a atenção. Ele parecia quebrado pelo meio, seu tórax formava um ângulo de 45 graus com o resto do corpo. Mesmo assim seguia caminhando como podia, apoiando-se com as mãos no quadril direito. Vestia um casacão muito usado, como aquelas roupas de segunda mão que apareceram no começo do inverno, doadas por alguns países solidários. Quando eu ia passando ao seu lado o homem foi ao chão e me apressei em ajudá-lo a levantar-se.
– Não quer sentar e descansar um pouco? – perguntei apontando para um banco ali perto.
– No! Voy a la manifestación, quiero oír el “Chicho” Allende”, y ni que sea lo último que hago em mi vida! – ele respondeu impaciente, lutando por seguir em frente.
Continuei meu caminho pela Alameda, que já estava bem cheia de manifestantes com faixas e bandeiras, se dirigindo ao palácio do governo. Na esquina com a rua Morandé avistei Omar com o pessoal do Cybersyn (todos de língua inglesa, também estava a Linda com seu poncho) caminhando animados para a Plaza de la Constitución, me juntei a eles.
Havia um palanque montado na entrada do Palacio de La Moneda com um enorme cartaz onde se via um punho erguido e o dístico:
UNIDAD Y COMBATE CONTRA EL GOLPISMO
LA PATRIA VENCERA!
No palanque estavam também os 4 chefes militares e a pedido de Allende a multidão os aplaudiu entusiasticamente como defensores da lei e da democracia. Eles se deixaram aclamar e uma semana depois destruíram o palácio do governo e fizeram das forças armadas chilenas uma brutal organização terrorista como nunca tinha existido.