O golpe militar estava planejado há muito tempo, e era um plano da força naval chilena em conluio com os serviços de inteligência dos Estados Unidos, a eles se somaram a Força Aérea, o Exército e por último os Carabineiros.
No dia 10 de setembro a marinha de guerra ianque inicia no Pacífico as manobras da operação UNITAS XVI, à qual vai se juntar a marinha chilena. As naves partiram de Valparaiso pela tarde (nos barcos chilenos tinham livre acesso oficiais estadunidenses e brasileiros) e na madrugada do dia 11 a força naval abandona a operação conjunta e retorna a Valparaiso, sua infantaria ocupa as ruas da cidade. Cortam-se todas as linhas de comunicação, com exceção proposital do telefone do prefeito da cidade, este liga para Carabineiros em Santiago. Às 6 horas da manhã toca o telefone na residência do Presidente em Tomás Moro e este se inteira da sublevação.
Allende ordena contatar o comandante em chefe das forças armadas gen. Augusto Pinochet, mas seu telefone não responde. Depois de várias chamadas infrutíferas Allende comenta com seus assessores: – Pobre Pinochet, deve estar preso…
O que pesa mais na balança deste mundo: os sonhos e ideais de quem acredita na vida e na honestidade das pessoas ou o chumbo quente de um oportunista, para quem a traição, a covardia e a brutalidade são apenas algumas das armas à sua disposição? Quando Pinochet se decidiu pelo golpe ele contava com:
6 regimentos de cavalaria, 16 de infantaria e 1 de artilharia, totalizando 24.000 homens;
8.500 homens na força aérea, para operar 45 aviões de combate, 90 de transporte e 30 helicópteros;
15.000 na armada, com 3 cruzadores, 4 destruidores e 2 submarinos;
25.000 carabineiros com armamento de infantaria.
Sem falar nos destroyers em frente das praias chilenas…
A vida é um mistério, e eu que nasci filho de bodegueiro me acostumei a por as coisas na balança: ponho num prato as palavras e promessas de um sonhador ingênuo, no outro os caminhões passando cheios de cadáveres. E os mortos boiando nas águas do rio Mapocho, os assassinados abandonados pelas ruas, a carne humana saciando os vira-latas e depois deles os ratos de Santiago… (Em algum momento os militares se desgostaram com o mau cheiro e começaram a cavar grandes fossas onde despejaram suas vítimas. Antes deles alguns religiosos procuraram dar um enterro cristão aos caídos.)
Eu tinha dormido no apartamento de Carolina e Milton na calle Merced e despertei com o rádio dando a notícia de que “um setor das forças armadas se havia insurgido contra o governo legal”. Pouco depois estava na rua, caminhando apressado pela Alameda junto com um grande número de pessoas na direção do palácio do governo. Havia uma certa euforia no ar com a iminência de combates, e queríamos nos alistar na defesa do governo de Allende.
No lado oposto da Alameda um edifício exibia os dizeres “EL PUEBLO UNIDO JAMÁS SERÁ VENCIDO” com letras gigantes, mas quando olhei para o banner ele começou a ser retirado. Continuei caminhando sentindo uma ponta de angústia assomar, as imagens da rua se embaralhando com lembranças de quando cheguei em Santiago. Foi quando soldados saltaram de um caminhão militar e se jogaram no solo, apontando suas armas em nossa direção e bloqueando a Alameda na altura de Morandé. Rapidamente a multidão foi desviando para a direita e eu me meti por Paseo Ahumada e segui por Agustinas, até chegar na Plaza de la Constitución.
O corpo de carabineiros da Guarda Presidencial estava postado dos dois lados da entrada do Palácio de La Moneda e também havia algumas tanquetas. Quando vi aqueles soldados leais defendendo seu Presidente uma sensação de alívio subiu pelo meu peito, diluindo a angústia. Eles estão tentando dar um golpe, pensei. Mas isso já aconteceu três meses atrás, quando cercaram com tanques o La Moneda no Tanquetazo. E não deu em nada, o general Prats rapidamente dominou a situação. E Prats já está a caminho, vindo do norte, ouvi dizer…
Se ouviam tímidos disparos pelas redondezas e em algumas janelas nos edifícios dos ministérios que cercam o La Moneda foram aparecendo armas que apontavam para baixo. Eu observava tudo, sentindo uma incipiente ebulição interior.
Uma semana atrás um pessoal do PS tinha me procurado ao saber que eu fiz o CPOR, queriam que eu desse instrução de manejo de armas numa fábrica. Driblei eles dizendo que tinha esquecido tudo o que aprendi no quartel, o que em parte até era verdade. Em todo caso, ensinar gente a matar gente não era comigo.
Mas agora ali, pensando nos soldados obstruindo a Alameda com seus fuzis, vendo as janelas dos edifícios povoarem-se de homens armados, passeando o olhar pelos carabineiros um ao lado do outro garantindo a defesa do Palácio…
– Pode ser que desta vez a coisa seja séria e haja luta, falei comigo mesmo. Aí tudo muda de figura. Vão distribuir armas, pra mim também. Certo, por que não? E senti a ebulição interior crescer, prestando atenção nos tiros e tornando a olhar para a Guarda Presidencial, que estava a uns dez metros de distância.
Então apareceu um oficial graduado e deu um comando de retirada. Pouco a pouco a formação foi se desfazendo e a Guarda Presidencial de Carabineiros se afastou pelas laterais, deixando o Palácio sem proteção.
Eu seguia observando e senti a angústia voltar, vendo as pessoas se afastarem, da multidão inicial apenas restava um pequeno grupo de apoiadores. Na minha mente havia um desconcerto geral, não conseguia pensar e não sabia o que estava rolando, mas também não arredava pé dali.
Então começou a se ouvir o ronco surdo de algo pesado que se aproxima. Era o som das lagartas dos tanques de guerra, avançando sobre o Palácio de La Moneda. Recuei um tanto e fui me postar perto da esquina com Agustinas.
Quando os tanques apareceram no perímetro da Plaza de la Constitución se desatou uma fuzilaria indescritível, dos franco-atiradores postados nos edifícios circundantes, que buscavam impedir o ataque blindado.
E eu dei no pé, voltei correndo para o apê dos amigos perto do Parque Forestal, a tempo de ouvir o último discurso de Allende. “Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor.”