Começara o Outono, anunciavam-se as primeiras chuvas e chegara o dia da abertura do Novo Palace Hotel, depois de dois anos e meio de trabalhos de profunda remodelação e restauro. Para a inauguração, além do requintado cocktail de recepção acompanhado de música ao piano, estava prevista uma visita guiada ao hotel e os discursos indispensáveis de boas – vindas. Tinham sido convidadas as autoridades da zona centro do país, os antigos donos daquele palácio, e muitos estrangeiros e nacionais ligados ao mundo empresarial. Por outro lado, os representantes da empresa espanhola que agora iria explorar aquela unidade hoteleira tinham querido ainda agradecer de modo especial a Rui como novo diretor, pelo trabalho de planeamento e execução ali realizado desde o primeiro dia, e a sua mulher Raquel, pelas pinturas belíssimas que conseguira restaurar nos tetos e paredes dos salões, quartos e corredores do hotel.
Aquele era um dia de particular significado para o casal! E felizes, de mão dada, quando chegou a altura, foram receber o prémio que lhes queriam oferecer! Na verdade, três anos antes, o casamento de Raquel e Rui estivera à beira do fim…
Quase sem saberem como, Alguém os tinha salvo… direta, ou indiretamente, ou talvez uma rede de bons amigos e a família que os ajudara a voltar a acertar o passo e a restaurar a vida.
Sim, três anos antes a saúde daquele casamento estivera frágil, muito frágil. Lenta, inesperada e insidiosamente, a doença tinha atacado. Era um vírus muito contagioso que, dia a dia, mais feroz e destrutivo, sem dó, nem piedade, parecia invadir tudo, primeiro atacando à superfície, depois em profundidade, até às entranhas, ferindo, magoando, e deixando muitas feridas abertas…
Era a saúde de toda uma jovem família deslocada da sua terra natal e sem familiares por perto para acudir, que estava em perigo, como já tinham visto acontecer, primeiro no cinema, nas revistas, nos romances, e depois, na vida real de tantos conhecidos e amigos… sempre a mesma estratégia de ataque e os mesmos traços em comum: uma rotina asfixiante, pequenas faltas de delicadeza mútua, falta de tempo e de gosto para estarem juntos e partilharem momentos de paz e prazer a dois, ausência de comunicação, ou berros inesperados, olhares e gestos de indiferença e menosprezo, zangas frequentes por pequenos nadas transformadas em conflitos permanentes, um muro de queixas engolidas em seco, mastigadas e ruminadas até à exaustão a sós, um rancor, uma repugnância, um cansaço moral, um desamparo, um pessimismo, um sofrimento a sós e depois, um desligar gradual, um desinteresse por tudo, como se nada importasse se a casa fosse abaixo, ou eles desaparecessem da face da terra… nada interessava!
Raquel e Rui viviam então numa encruzilhada dificílima.
Como ia longe o tempo daquele namoro apaixonado de dois anos, sempre ansiosos por estarem juntos, por se falarem e beijarem, por contarem tudo um ao outro, sempre de mãos dadas e olhos nos olhos, um tempo cheio de sonhos, risos e sorrisos, assim como a maravilhosa lua de mel nas Baleares e os primeiros tempos de casados em que tudo eram rosas… Depois tinham começado a surgir os espinhos, aqui e ali, as dificuldades: problemas no trabalho dele, horários pesados, muito ‘stress’, fins-de-semana e noites inteiras ao computador para terminar tarefas inadiáveis, o nascimento dos três primeiros filhos muito próximos, as faltas de ajudas das famílias de ambos que viviam bem longe na província, a necessidade de ela ficar em casa e deixar o curso de Belas- Artes de que tanto gostava e o seu trabalho de restauros de obras de arte em ‘part- time’, por causa dos pequeninos, os sinais de esgotamento dela, a sua perda de auto-estima, o seu ar negligenciado e sem graça, a promoção do marido, mas à custa de frequentes deslocações ao estrangeiro por períodos longos, deixando-a sozinha com as crianças, depois as primeiras desconfianças dela, e também a aventura da compra daquela casa enorme com juro alto, que ela não queria por sentir que talvez fosse ‘um salto maior que a perna’ …
Até então fora um acumular de fatores negativos, mas agora que ela descobrira que o marido tinha ‘jantares de trabalho’ frequentes e até muito tarde com uma nova chefe americana, chegara o pico da crise …
Sentiam- se como náufragos num mar encapelado, mas em vez de se ajudarem e agarrarem à mesma tábua de salvação que Alguém lhes estendia, cada vez se sentiam mais estranhos e se afastavam mais um do outro, gastando energias em sinais agressivos sem sentido…E os cinco filhos? Sim, os cinco filhos que não tinham pedido para nascer e que eles sempre diziam serem ‘frutos do seu amor’? Que seria deles?
Entre os 11 e os 2 anos, três rapazes e duas meninas, pouco ou nada percebiam do perigo, mas sofriam já as consequências daquela doença … eram as birras inesperadas, gritos e lutas entre os mais pequenos, pesadelos de noite, de novo ‘chichis’ na cama, dos mais velhos, e seu desinteresse, indisciplina e falta de rendimento na escola, desorganização total nas horas de deitar e levantar de todos, na própria higiene e alimentação, e por fim, a casa num pandemónio…mochilas, cadernos e livros abandonados na sala, roupa suja amontoada junto à máquina de lavar, pilhas de roupa para engomar, camas por fazer, caixas de pizzas diárias no lixo por despejar, casas de banho por limpar…e quando todos saíam de casa para a escola, Raquel voltava a deitar- se ao lado do mais pequenino…e tentava dormir.
Aquilo não era vida, mas naquele tempo Raquel e Rui não conseguiam sequer um momento de lucidez para se sentarem e pensarem numa solução ‘dentro ‘ de casa, eles só pensavam’ tirem-me daqui’… ‘quero ir para fora deste casamento…’mas, e os cinco filhos???
Alguns amigos apercebiam-se e preocupavam-se há muito. Queriam ajudar, mas não sabiam como…falavam com um e com outro, convidavam as crianças para os deixarem a sós ao fim-de -semana, davam- lhes bons conselhos na melhor das intenções, mas nada parecia ser bem aceite. ‘ Podiam ir falar com este médico…’, ‘com aquele padre que os casou… ‘, ‘com aquela psicóloga… ‘, ‘ tu tens de mudar de trabalho!’, ‘arranja uma empregada para ajudar em casa…’, ‘ vão viver para outro lugar…’ ‘… obrigado, mas NÃO se metam na nossa vida…’, respondia o casal, irritado, mais que uma vez.
Até que um dia, na véspera de uma ida ao advogado, para definirem condições de divórcio, Rui saiu para levar os filhos à escola, mas depois lembrou-se que tinha esquecido o computador em casa e teve de regressar para o ir buscar. Ao entrar em casa encontrou o mais pequenino a chorar dentro da cama de grades e a mulher sem sentidos, caída no chão. Compreendendo o acontecido e temendo o pior, de imediato chamou uma ambulância e levou-a ao hospital. Entretanto deixou o bebé com uma vizinha.
Na longa espera na sala do hospital, Rui sentiu remorsos pela primeira vez e pensou no seu casamento agora a desfazer-se. Sentado a um canto, de mãos na cabeça, só pensava no que iria acontecer à pobre Raquel. Salvar-se-ia? Teria chegado a tempo? Em que estado ficaria? Pobre Raquel! Como é possível isto estar a acontecer-nos? Não conseguia imaginar- se sozinho com os cinco filhos tão pequenos. A amiga americana era bonita, atraente e dizia – se apaixonada por ele… mas ele bem sabia que tudo aquilo não passava de uma ilusão, uma fantasia de adolescentes, uma fuga à realidade, um escape aos problemas acumulados em casa…ela nunca seria uma mãe para os seus filhos… estava em Portugal de passagem, qualquer dia voltaria ao seu país e nada ficaria dessa paixoneta…ele próprio sabia como era enganador o que sentia por ela. Era apenas uma atração … Percebia que tinha culpa do que estava a acontecer… fora imprudente… muito egoísta e insensível … e aquele fim-de-semana com a americana em Nova Iorque fora uma verdadeira traição à mulher e aos filhos…
Sentindo-se abafar dentro do hospital, levantou – se, saiu para o jardim, e enquanto fumava cigarro atrás de cigarro, chorou amargamente, sem ser visto…depois telefonou a uns amigos a pedir ajuda para os filhos pequenos. Iria buca- los mais tarde, logo que possível. Não deu grandes pormenores, mas explicou que estava nas urgências do hospital com a mulher. De vez em quando pedia notícias na recepção, mas só lhe diziam que o médico já viria falar com ele. Ao fim da tarde, chamaram- no por fim e disseram -lhe que poderia ver a mulher, agora fora de perigo, mas ela teria de ficar internada mais alguns dias. O médico falou demoradamente com ele. Depois, Rui entrou no quarto, inclinou- se e beijou Raquel carinhosa e demoradamente, e apesar de a ver ensonada, sabia que ela o ouvia e falou lhe ao ouvido, prometendo que tudo ia mudar.
E mudou de facto. A família voltou à quinta dos avós, na província, onde havia ajudas com as crianças, várias casas e uma delas até estava livre para eles; puseram em venda a casa nova, e Rui deixou aquele emprego. Entretanto, não sabia como, Alguém lhe trouxe uma oferta de trabalho ali perto da quinta e sugeriu que tentasse o lugar a concurso de diretor daquele Novo Palace Hotel… concorreu, foi chamado, gostaram dele e foi aceite…depois acontecera um imprevisto ao pintor que iria restaurar os frescos das paredes e tetos do hotel… era necessário urgentemente encontrar outra pessoa… Rui apresentou Raquel aos espanhóis, ela mostrou- lhes um portfólio de trabalhos e foi chamada. Gostaram muito das suas propostas para o hotel e quando as obras já iam adiantadas começou ela a pintar… e foi um sucesso! As crianças entretanto, davam -se bem nas escolas respetivas, deliravam com a vida na quinta, tinham os carinhos dos avós e a mãe, as ajudas necessárias em casa…
Por isso aquele dia tinha um significado e um sabor muito especiais para Raquel e Rui! Todo o trabalho de restauro do hotel estava intimamente ligado ao restauro da vida daquela família!
No final da inauguração, já a caminho de casa, ao atravessarem a longa alameda cheia de hortenses azuis e brancas, sob um céu meio enevoado, começaram a cair os primeiros pingos de chuva de Outono e aquele casal sentia- se abençoado!