As embaixadas fazem parte dos órgãos governamentais mais importantes, e a atuação dos seus diplomatas joga um grande papel na imagem que uma nação civilizada projeta para o mundo.
A figura considerada de maior relevo na história da diplomacia brasileira é o Barão do Rio Branco, que consagrou os princípios da não-intervenção em assuntos internos de outras nações e da solução pacífica dos conflitos.
Mas há muitos outros exemplos luminosos de diplomatas que souberam honrar sua profissão e seu país, entre eles João Guimarães Rosa, que num tempo conturbado soube colocar a defesa da vida humana em primeiro lugar.
Se supõe que um dos deveres principais de uma representação diplomática é o de dar proteção aos seus nacionais no exterior, em caso de necessidade ou numa emergência.
No entanto um brasileiro que se encontrasse no Chile em setembro de 1973 teria de se confrontar com a negação e a inversão dos princípios consagrados por parte da Embaixada do Brasil.
É voz corrente que a Junta golpista que instaurou o terror no Chile, além dos quatro chefes militares contava também com um quinto membro civil. Era o embaixador brasileiro Antônio Cândido da Câmara Canto.
Havia alguns milhares de brasileiros no Chile quando se deu o golpe militar em 11 de setembro, e a maioria de nós passou a correr grave risco de vida. Os chilenos denunciavam massivamente e não podíamos permanecer mais de um ou dois dias no mesmo lugar, em casa de algum conhecido. E para onde ir? Partíamos em busca de outro refúgio, sem saber se encontraríamos, mas quem fosse visto caminhando pelas ruas em horas de toque de recolher era imediatamente fuzilado. Diante do desamparo e desespero dos brasileiros a Embaixada do Brasil fechou suas portas e negou qualquer proteção aos seus compatriotas. Em vez disso engalanou seus recintos no belo prédio da avenida Bernardo O’Higgins e atrás das portas fechadas festejou a tragédia chilena com finas iguarias, brindando pela morte do presidente Allende.
(A coisa de um ano antes meu passaporte estava para vencer, o que me deixaria ilegal no Chile, e resolvi ir à nossa embaixada para renovar o documento. O pessoal com quem eu morava na comuna de Las Rejas me advertiu que a embaixada brasileira era um antro subversivo e de monitoramento dos brasileiros, mas me pareceu que estavam exagerando.
Chegando no balcão de atendimento, falei um bom dia que não foi correspondido.
Em vez disso o funcionário me inquiriu cortante:
– O que o senhor deseja aqui?
Expliquei que se tratava da renovação do meu passaporte para poder permanecer em situação legal no Chile e…
– Não vamos renovar seu passaporte! – o funcionário atalhou impaciente.
– Quê? – falei espantado, enquanto o cara me fitava provocador.
Eu contava com alguma aporrinhação, que me pedissem isso e aquilo de papéis, mas em momento algum tinha me passado pela cabeça a possibilidade de uma recusa assim, contrariando a lei e a nossa condição de país civilizado.
– Mas por quê?! Qual a razão?? – gaguejei.
– O senhor sabe muito bem a razão! – a figura disparou, virando as costas e me deixando ali plantado.
Eu não sabia a razão, nunca soube, porque não havia razão nenhuma. Não havia cometido nenhum crime, não corria nenhum processo contra mim… Mas voltando para Las Rejas tive que dar razão às advertências dos amigos e cair na realidade. Estava sendo monitorado sim, como todo mundo. Eles sabiam que eu ia nas manifestações de apoio ao governo popular, que participava dos trabalhos voluntários, que tocava em atos nas poblaciones… Essa era a razão.)
O Informe Rettig e especialmente o Informe Valech – documentos oficiais redigidos por autoridades morais e especialistas em crimes contra a humanidade – recolheu uma parte das atrocidades cometidas, de pessoas que sobreviveram e estavam em condições de relatar o que sofreram nos mais de 700 lugares de torturas espalhados por todo Chile. Foram ouvidos dezenas de milhares de testemunhos, mas muitíssimas vítimas silenciaram, para não reativar o horror, a humilhação e o medo.
“Faziam roleta russa com prisioneiros, até que uma bala lhes rebentasse a cabeça; dois adolescentes foram encharcados com querosene e lhes atearam fogo; apertaram o ferro de passar roupa ardente no rosto de uma jovem dirigente estudantil, que ficou para sempre deformado; atravessaram as mãos de uma enfermeira até que ela se dessangrou inteira; rebentaram a cara de um camponês de 16 anos e depois seu cadáver foi encontrado com a boca cheia de excrementos de cavalo; arrancaram uma a uma as unhas de um pianista; mataram um dirigente político aos poucos, queimando seu peito com um maçarico; aplicaram choques elétricos nos testículos de um guri, para obrigar seus pais a “falar”; a uma mulher lhe meteram ratos na vagina, e amarraram uma outra para que fosse penetrada por um cachorro treinado…”
“Me golpearam os dois ouvidos ao mesmo tempo, fiquei surdo do direito”. (tortura do “telefone”)
“Me tiraram a roupa e me penduraram de uma barra que passava entre os cotovelos e a parte traseira dos joelhos, a sensação era de ser esquartejado “. (tortura do “pau de arara”)
Os militares chilenos não tinham muito Know-how em matéria de tortura, mas veio uma equipe de especialistas do Brasil para lhes ensinar. E para interrogar e torturar os brasileiros presos no Estadio Nacional.
A Embaixada do Brasil negou amparo aos seus compatriotas necessitados, mas acolheu com todas as benesses e honrarias aquela comitiva da morte.