Existe uma regra, ou recomendação, de não conversar sobre política, religião ou futebol, a menos que se o faça com um correligionário. Frequentemente também se escuta a advertência de não misturar política e religião, como escutei de um iraniano contrário à teocracia. Segundo ele, a política suja a religião.
Bem, reza a experiência que de fato colocar estes assuntos no mesmo caldeirão nem sempre gera uma sopa digerível. Mas o problema, vejo hoje com mais nitidez, sobretudo depois de ler “Humildade: precisa-se”, de Hugo Azevedo, não reside nos alimentos, mas nos condimentos. Quando entra o moído da vaidade, o extrato de orgulho e a pimenta malagueta da soberba, o prato causa desarranjo.
Como em tudo que é humano está presente a corrupção do pecado original, qualquer tema pode ser motivo de altercação. Ou não presenciamos controvérsias no dia a dia profissional? Perdi a conta das vezes em que me vi envolvido em discussões pouco produtivas sobre a causa de uma falha ou sobre como resolver um problema na área da engenharia,.
Subir nas tamancas, portanto, não depende do tema abordado, senão da reação dos envolvidos. Conheci pessoas que tinham o prazer do bate-boca. Como no Oriente Médio é praxe negociar o valor de mercadorias, demandando por vezes paciência e tempo, sem o quê nem o vendedor se satisfaz, também no trabalho há os que adoram colocar pontos de interrogação, na tentativa de puxar a brasa para o assado de seus argumentos. Aliás, não são muitos os que acabam reconhecendo que a solução defendida por outrem é de fato melhor.
Posso ser um nefelibata, mas entre amigos não deveria haver restrições de assuntos, até porque a amizade também tem como alicerce uma mínima identificação de interesses, de alma. Poucos entretanto não se melindram, ou se escondem depois de uma confissão. Posso dar dois exemplos. No primeiro deles, um pai, muito triste, me contou que descobrira que um de seus filhos apresentara inclinações homossexuais. No outro caso, um marido debulhou-se em lágrimas ao revelar que sua esposa o deixara, tanto quanto sabia sem razões palpáveis. Nunca mais foram os mesmos. O constrangimento os venceu. Um detalhe: a esposa acabaria voltando.
Revelar fragilidades na vida pessoal pode afastar quem falou de quem ouviu, porque não gostamos de expor nossas vísceras ao abutre da maledicência e do escárnio. Dizem que por tais circunstâncias, cônscio da dignidade de Chefe de Estado, D.Pedro II não teve amigos íntimos. Não é por outra razão que a confissão religiosa é tão desejável na busca do perdão e da paz. Afinal o confessionário é um túmulo de pecados e tristezas.
Ainda assim, penso que amigos de peso deveriam passar por cima de tais escolhos, desde que não escondam nem de si mesmos os pobres diabos que somos todos.
Se nem entre amigos alguns temas podem ser livremente tratados, o que dirá entre as nações. Política deve ser orientada para o bem comum, sem apelo à religião. Não é este o mantra? Contudo, pode ser bom o resultado quando o pecado original é esquecido?
Conciliar contrários, limar desavenças e buscar o entendimento, com o verdadeiro intuito de paz, sem interesses outros, é apanágio de um grupo seleto. Participar da vida política manejando com a consciência as rédeas do bem comum é qualidade de um time igualmente pequeno. Quando tais qualidades se unem num só homem, vem a lume um estadista.
Dag Hammerskjöld foi uma destas aves raras. Depois de desempenhar funções no governo sueco, tornou-se o segundo Secretário Geral da ONU, cargo que exerceu de 1953 até sua morte, num acidente aéreo na selva africana, em missão para resolver o conflito no Congo, que acabara de proclamar sua independência da Bélgica.
Homem espiritualizado, cristão sem proselitismo, deixou registros de sua vida num diário, publicado post mortem sob o título “Sinais pelo caminho”. Trata-se de uma mistura de poesia, compromisso com a verdade e transcendência. A introdução do livro, de Carlo Ossola, prenuncia seu autor: “Infelizmente, não é fácil de ler. O influxo nas páginas desta obra de palavras como silêncio, pecado, graça, condenação, consagração, cruz… Tornam-no ininteligível em muitos cantos do nosso presente — a incapacidade da nossa sociedade para lidar com estes conceitos parece-me ser um obstáculo pior à compreensão deste diário do que tentar lê-lo no texto original sueco”.
Hammerskjöld é hoje um nome relegado ao esquecimento. À época foi criticado por sua atuação no Congo tanto pelos Estados Unidos quanto pela União Soviética. Sua memória deveria ser mais reverenciada. Como testemunho vivo de quão diferenciado era, registrou no diário que “o caminho até a santificação, em nossos dias, passa necessariamente pela ação”. Santificação? Você pode imaginar esta palavra na boca dos dirigentes mundiais?
Dois meses antes de sua morte poetou: “Acordado do meu torpor, livre de todas as amarras, limpo, disposto, adornado, chego ao umbral. Perguntado se tenho coragem de continuar minha jornada até o fim, dou uma resposta definitiva. Deslumbrado, vejo a porta da arena aberta e saio, desnudo, ao encontro da morte”.
Talvez seu avião tenha sido abatido pouco antes de pousar. Não seria inverossímil. Afinal, o status quo não aprecia quem fala em santificação.