O Sr. Amadeu era natural de Sintra, lá nascera, lá casara, sempre ali vivera e quem lhe tirasse Sintra, tirava -lhe tudo. Em novo fazia biscates, era um jeitoso de mãos, sabia tudo de construção civil, e casara com uma jovem bonita e franzina, que trabalhava a dias, cozinhava e engomava na perfeição. Agora, aos 80 e tal anos, viúvo e sem filhos, quem dele cuidava com carinho de filha era uma das muitas sobrinhas. Precisamente, a que era mãe de família mais numerosa, ( uma gorducha sem graça , a menos bonita delas todas, mas com um coração de ouro), e a que mais trabalhava, todo o dia ocupada na secretaria dos bombeiros. O Sr. Amadeu vivia perto dela, numa ruela entalada entre a igreja de S. Martinho e o hotel Central, por baixo de um arquinho, numa casinha modesta e pequena, mas sempre asseada, porque ele ainda sabia tratar da casa e a sobrinha todos os dias lá ia dar um arranjo e fazer – lhe comida (como a querida tia Ana lhe pedira, encarecidamente, antes de fechar os olhos).
O Sr. Amadeu tinha muitas saudades da sua Ana, mas pouco a pouco fora- se habituando à solidão. Era um homem de bom feitio e agradecido, mas irritava- se um pouco com tanta recomendação: ’ ó Tio, não vás para a rua sem bengala! Leva a boina! ‘‘Põe o casaco que está fresco…’, ‘não saias hoje que o chão está escorregadio e vai chover bastante…’
Invariavelmente, o Sr. Amadeu respondia que ela não se preocupasse e fosse à sua vida (‘ vai, vai andando, vai com Deus e toma conta de ti, que eu tomo conta de mim…’) porque ele ia só ali à tasca do Toino , beber um copito com os amigos , ou então dava um salto ao barbeiro para ele lhe ‘aparar a careca’, e logo voltava para casa… mas a sobrinha bem sabia que já não havia ali barbeiro, tudo estava diferente, Sintra estava cheia de turistas, já ninguém ali morava por perto, os amigos dele já tinham morrido, ou estavam doentes, e receava que o tio bebesse em excesso na nova tasca chic de um dono estrangeiro ( pois o Toino já tinha morrido também…) , e podia embebedar- se sem dar conta… ou pior ainda, meter -se a caminho da serra de Sintra, que ele tanto amava, e cair , ou mesmo perder-se… era uma grande preocupação ! Ainda por cima, ultimamente, andava um tanto confuso… dizia muitas vezes, que tinha de ir à Serra encontrar- se com um amigo especial… ia procurar o escritor Ferreira de Castro que tinha lá um banquinho na serra, onde escrevia os seus romances e ele, Amadeu – que mal sabia ler e escrever!- dizia que gostava de o inspirar e ajudar…com as suas conversas… ora o famoso escritor já tinha morrido nos anos 70… era verdade que se tinham conhecido e o escritor até lhe tinha oferecido o romance ‘A selva’ com uma linda dedicatória, mas para o Sr. Amadeu que perdera a noção de tempo, tudo isso era presente e acontecia agora…
Acresce que a sobrinha sabia que o tio Amadeu tinha a profunda certeza de que nada de mal lhe poderia acontecer porque tinha uns ‘amigos invisíveis’…e por isso, maior a sua preocupação …
Ainda a tia era viva e já o Sr. Amadeu ‘falava’ com os seus amigos invisíveis, sobretudo com o Anjo da Guarda e … o macaco Simão!
Com efeito, contava ele, que em criança, pouco antes de a mãe morrer, ela lhe ensinara uma coisa muito importante: ‘Amadeu, tu nunca tenhas medo do escuro, nem dos ladrões! Nunca estás sozinho! Quando nasceste, fui ali à igreja de S Martinho e entreguei- te nas mãos de um Anjo da Guarda que nunca te deixará! Tu não o vês, mas é o teu grande Amigo invisível…reza- lhe sempre, ou canta- lhe, que ele gosta e quando eu partir, vais perceber que ele vai estar sempre a teu lado…’
Depois, quando começara a escola, Amadeu habituara- se a outro amigo’ invisível’ …
O vizinho do andar de cima, tinha trazido um saguí de África, a que chamara Simão, e o Amadeu gostava muito de brincar com ele e dar -lhe amendoins. Às vezes o macaquinho saltava- lhe para o ombro e acompanhava- o à escola, ficando à porta, à espera que ele regressasse. Outras vezes, o dono, aborrecido, prendia- o com uma corrente e Amadeu, como criança, falava- lhe e dizia- lhe: ‘ – Deixa lá, não te chateies, Simão! A minha professora diz que nós podemos viajar em pensamento… pensa que vais comigo e eu penso que tu vens comigo a meu lado … guardo -te lugar e depois conversamos, sim?’ E durante muito tempo, este amigo ‘invisível’ tornara- se uma preciosa companhia para o Amadeu. Até lhe guardava um lugar vazio a seu lado, quando ia para a escola, no recreio e no refeitório. Os companheiros de escola riam- se…mas aquela era uma forma de Amadeu vencer a solidão e os medos tão naturais numa criança órfã…
Os anos tinham passado entretanto. Ninguém conseguia segurar o Sr. Amadeu em casa. A sobrinha queria arranjar-lhe uma cuidadora, ou interná-lo num lar, mas ele não queria… tudo parecia normal, era autónomo na higiene, na alimentação, nas compras, excepto na conversa sobre os amigos…essas recordações favoritas que pareciam tão reais e o faziam feliz.
Para ele, os amigos estavam vivos, e o macaquinho e o escritor também! Eram todos amigos invisíveis, com quem falava diariamente …e o menino, que persistia vivo dentro daquele velho, assim voltara, convictamente, a combater a dor real da solidão!
Naquele dia, chovia copiosamente, e uma vez mais, a sobrinha lhe fora dizer que não saísse por causa da chuva… e o Sr. Amadeu, ainda deitado por ter dormido mal, respondera que não se preocupasse… só que, logo que ela saiu, saltou da cama e convidou o seu amigo invisível para o acompanhar à serra!
‘Simão, anda daí, que eu não gosto de estar sozinho! Vamos tomar o pequeno-almoço, faço a barba e vamos lá acima à serra que hoje tenho encontro com o meu amigo Ferreira de Castro! Ele trouxe- me um presente do Brasil… ih !ih !ih !, se forem bananas, partilho contigo!’
E lá se meteu a caminho, com chapéu de chuva, bengala e uma sacola, para trazer o prometido presente…
Passando à porta da igreja, como sempre, tirou a boina e cumprimentou o seu Anjo da Guarda… depois seguiu caminho, serra acima, conversando com Simão…
Entretanto, o tempo parecia cada vez pior, o vento fustigava- lhe o rosto, e virava – lhe, a cada passo, o chapéu-de-chuva… o Sr. Amadeu, em dado momento, já cansado, resolveu arrepiar caminho, voltar para casa, e de repente, atrapalhado com o chapéu-de-chuva, escorregou nas folhas molhadas, tropeçou numa pedra, bateu com a cabeça no chão e caiu desmaiado, rolando rampa abaixo…quando voltou a si, escorria sangue da testa e viu- se todo enlameado… assustou- se e chamou por cada amigo, mas eles não vinham, não apareciam…’Simão… Simão!
E não passava ali vivalma! Ao entardecer, a chorar, foi- se arrastando até um banco da estrada de Seteais, sentou- se como pôde e chamou de novo, mas desta vez pelo seu Anjo da Guarda! Chamou, chamou, chamou…e ele apareceu!
De repente, à sua frente, parou uma ambulância e lá de dentro saiu a sobrinha, toda aflita com mais dois bombeiros e uma maca.
‘Ó tio Amadeu! Tanto que o procurámos… eu não lhe disse que não saísse de casa? Eu logo imaginei…Ó valha- me Deus, em que estado está! Como veio parar aqui tão longe de casa???’
Naquele momento, ao ser levado para a maca, o Sr. Amadeu olhou espantado para eles, e de olhos muito abertos , comentou apenas:’ Eu sabia que tinha um Anjo da Guarda e ele não me ia faltar… mas a minha mãe mandou três? Vocês salvaram – me a vida! Obrigado!’