A Comissão de Saúde tem tido intenso trabalho. Além das mulheres grávidas e dos doentes crônicos, das pragas de insetos parasitas, das bronquites e similares, têm proliferado os quadros depressivos, os surtos paranóicos e outros tipos de transtornos mentais. Hoje um venezuelano entrou em parafuso, parece que é um caso de ciúmes possessivo e obsessivo-compulsivo, coisa assim. A mulher dele é bonita e tem um olhar oblíquo e dissimulado que parece estar sempre convidando…
De um modo geral aqui a regra é o amor livre, e as pessoas transam onde podem e como podem.
A Gal é muito requestada e está constantemente driblando algum pretendente. Outro dia eu estava tocando violão baixinho e ouvi ela reclamar em voz alta e impaciente:
– Não me incomoda! Eu dou pra quem eu quero e quando eu quero!
À noite no silêncio, quando as pessoas nos salões se deitam para dormir, com frequência se ouvem os gemidos da OEA transando com alguém numa boa. As pessoas mais recatadas se escandalizam, mas elas estão em minoria.
Pois esse venezuelano estava bagunçando o coreto e conseguiram convencer ele a entrar na enfermaria. Só que no meio do papo com o pessoal médico ele deu um pulo e queria sair correndo porta afora. Aí quando foram segurar ele, a pinta partiu pra agressão física, e foi um bafafá. O cara é parrudo e na falta de camisa de força tiveram que chamar o Urso e o Caio. Eles vieram correndo e o Urso deu-lhe um abraço enquanto o Caio aplicava uma chave de braço nele. E ali ficou aquele terceto terapêutico, imóvel e em silêncio um bom tempo, até o dito cujo desparafusar, sem derramamento de sangue.
Em baixo do piano de cauda negro onde estou morando, minha mente oscila entre as memórias, os sonhos e a observação da vida no interior da Embaixada, que tem muito de uma arca da salvação, mas cada vez mais me faz pensar numa Nau dos Insensatos. (Asilos e hospícios não existiam até fins do século XVIII e durante muito tempo era costume embarcar os loucos em uma nau sem destino, que singrava errante os mares e era repelida em toda parte onde chegasse.) Também aqui, não sabemos para onde iremos. E aos poucos vamos perdendo o interesse em saber.
É visível que a desordem mental vai se disseminando entre estas paredes, todos estamos mais ou menos afetados. E neste filme de terror que estamos vivendo o Sapateiro é um dos astros principais. Ele anda sempre com um pedaço de pau numa mão e na outra uma garrafa de água. Alguém perguntou e ele explicou a razão disso.
– É que tem um maldito que me persegue há muito tempo, ele está infiltrado aqui e só espera eu dormir no ponto pra me matar.
Por essa razão ele se recusa a usar um colchão e prefere juntar duas cadeiras no patamar da escada de mármore que sobe do subsolo. Ali é o melhor lugar para vigiar toda a embaixada. Ali ele fica sentado até o dia clarear, molhando a cabeça com a água da garrafa quando sente que está para adormecer.
No caso do Vitor a noia é menos chamativa. Ele é um cara silencioso, fica sentado num canto fumando seu cigarro. Acontece que muita gente trouxe seu jogo de xadrez – o C. M. vem organizando torneios pelas tardes – e o Vitor adora jogar. Aí você está sentado jogando com ele, é sua vez de jogar, está concentrado no tabuleiro e descobre um ataque que conduz ao xeque-mate, ergue a mão para mover o bispo na linha diagonal e…
– Pof!
Um murro no seu rosto lhe joga para trás. Deitado, você vê estrelas e confere com o os dedos se quebrou algum dente, sem conseguir entender o que está acontecendo. Vem gente lhe ajudar e tranquilizar, examinam seu rosto, lhe ajudam a retomar seu lugar.
– Tudo bem companheiro… Não ixquenta, deixa pra lá, não foi nada.
Enquanto isso, Vitor está de braços cruzados, imóvel e silencioso como um totem, olhando o tabuleiro e esperando paciente sua jogada. Ninguém toca nele, seus surtos são curtos e não há nada a fazer.
Tem também o devaneio morfético dos intelectuais da política, que se reúnem na enfermaria ou no quarto do primeiro andar, quando todos dormem. E ali tecem uma enredada teia de aranha de palavras, na laboriosa tentativa de gerenciar nossos destinos…
Quando a confusão mental se alastra desse jeito, a gente acaba encontrando uma certa graça, um certo charme na insensatez. E fica querendo criar novas modalidades, como parece ser o caso do Terror de Potosi.
Durante umas horas em que todos desceram para tomar banho de sol no jardim, ele montou uma cadeira sobre uma caixa, trepou ali e foi soltar um dos pingentes de cristal do grande lustre barroco suspenso no teto do salão.
E passou a andar sempre com esse pingente, diz que afasta o mau olhado e as energias negativas. Ele usa o cristal como uma lente, quando olha as pessoas e as coisas. Tudo se vê envolto numa benfazeja aura de cores caleidoscópicas.
Na última manifestação, quando eu caminhava com o pessoal do Cybersyn, de repente minha consciência se apagou, ou melhor se transformou. Deixou de ser eu que estava ali caminhando no meio da multidão, ouvindo vozes que gritavam consignas ou conversavam. Passou a ser apenas o todo indiferenciado, não havia separação, eu era esse todo.
Para meu espanto continuava caminhando, mas era como se estivesse parado. Respiração, visão, nada deixou de funcionar, mas não era eu que regia as ações.
Isso durou alguns minutos, depois aos poucos senti que ia voltando à normalidade.