Em 1939 o barco Winnipeg cruzou o oceano Atlântico com mais de 2000 refugiados, republicanos derrotados da guerra civil de Espanha. Eles tinham sobrevivido a duras penas numa espécie de campo de concentração no sul da França – para onde haviam escapado do extermínio promovido pelas tropas de Franco – e foram resgatados graças ao esforço solidário do poeta Pablo Neruda, que era cônsul do Chile naquele momento.
Pablo Neruda declarou mais tarde ter sido o resgate dos espanhóis – entre os quais havia um grande número de crianças – o mais belo poema que ele havia criado em toda sua vida. O Winnipeg era um barco velho e não fora construído para transportar tantos passageiros, mas conseguiu driblar os submarinos alemães e aportar incólume em Valparaiso. Os refugiados foram acolhidos com carinho pelo povo chileno, que esqueceu todos os ressentimentos dos tempos coloniais para amparar seres humanos em necessidade. E os espanhóis republicanos foram integrados na vida chilena, vários deles se tornaram figuras de destaque na cultura do país andino. Um misterioso link me ligou a esse episódio, quando entrei no Chile.
Era no começo de 1972, eu estava em uma comunidade de hippies na região argentina de El Bolsón e quando falei de partir dali rumo ao Chile uma pinta de barbicha se ergueu e falou em inglês que iria comigo. Era o canadense Bill, com quem eu nunca tinha trocado palavra e de quem nunca soube o nome completo. Partimos de El Azul seguindo uma trilha que contornava o cerro e seguia subindo a cordilheira. Ao anoitecer encontramos um estábulo com três cavalos e Bill anunciou que ali passaríamos a noite. Ele havia crescido numa estância no Canadá, tinha muita experiência e rapidamente organizou um espaço para passarmos a noite dentro do estábulo, aproveitando o calor dos animais.
Pela manhã seguimos caminho, depois do breakfast que Bill preparou – sua mochila enorme tinha três andares com muitos mantimentos e ferramentas. No entardecer do terceiro dia chegamos num posto de fronteira, havia um bando de gente querendo entrar no Chile. Fiz fila para o controle de passaportes e quando chegou minha vez o funcionário de bigodinho me informou: para cruzar a fronteira era necessário cambiar cinco dólares em escudos chilenos por cada dia que fosse permanecer no Chile. Eu levava comigo doze lucas, dinheiro argentino com que podia comprar dois litros de leite…
Saí da fila frustrado e ensimesmado, matutando o que fazer. Bill me seguiu – ele não falava espanhol – e quando expliquei em inglês a exigência de cambiar os dólares – ele tinha muitos Travellers Checks – por escudos, reagiu com palavrões. E foi procurar um lugar para fazer um bivaque, a uma certa distância do posto fronteiriço. Nos acomodamos junto a uma árvore copada e acendendo um foguinho para preparar uma aveia, Bill resmungava sem parar e me anunciou que iria voltar pela mesma trilha e seguir viagem na direção de Buenos Aires. Eu escutei em silêncio, sem saber o que dizer.
Estava começando a escurecer e na falta de coisa melhor, peguei o violão e fui sentar num degrau da entrada do restaurante que havia ao lado do posto de controle. E comecei a cantar uma canção que tinha aprendido no Paraguai, que fala da tristeza de abandonar a terra natal, sem poder definir o próprio caminho… Quando cheguei no refrão, para minha surpresa uma voz muito vibrante vinda do posto fronteiriço cantou comigo: Que será, que será, que será / Que será de mi vida que será / Si sé mucho o no sé nada / Ya mañana se sabrá / Y será, será lo que será…
Continuei cantando, a canção tem várias estrofes, e vi a porta abrir e sair o funcionário de bigodinho que me havia atendido. Ele se aproximou de mim, cantou novamente o refrão comigo e quando a canção terminou me convidou a entrar com ele no restaurante, era fim de expediente no posto. Ele mandou vir cervejas e quis saber meu nome e de onde eu vinha. E antes que a moça viesse com as cervejas me perguntou se eu sabia tocar a música Las Golondrinas. Eu respondi assim: – Si Usted la canta, yo lo acompaño con la guitarra. Então seus olhos brilharam e ele se empertigou todo, enquanto escutava a introdução que fiz no violão. E começou a cantar: Adonde irá veloz y fatigada / La golondrina que de aqui se va…
Essa música eu havia tocado muitas vezes, mas apenas instrumental, da letra eu só sabia os dois primeiros versos. E escutando pela primeira vez a letra completa na voz do funcionário – que se chamava Benito González -, foi me entrando uma intuição comovida do que estava de fato rolando ali entre nós. O tema de Las Golondrinas é semelhante ao da canção que eu havia cantado, especialmente na estrofe que diz: Também deixei minha pátria idolatrada / Oh terra santa que me viu nascer / Minha vida é hoje errante e solitária / E já não posso ao meu país volver…
Nesse meio-tempo as mesas em volta de nós foram se povoando, nos postos havia terminado o dia de trabalho e os funcionários vieram escutar nossa performance musical, num alto astral, entre cervejas, sanduíches e chocolates. Desfiamos muitas canções noite adentro e em certo momento veio a esposa do González, para saber porque ele não tinha ido para casa, mas logo voltou tranquilizada. Em algum momento interrompemos a cantoria e Benito me contou da sua vida. Ele era espanhol e tinha vindo para o Chile com poucos anos de idade, junto com seus pais, em um barco com muitos fugitivos da guerra civil espanhola, fazia mais de trinta anos, nunca mais voltou à sua pátria, me contou. E quando me ouviu cantar… Aí ficou explicada toda a minha intuição.
Aos poucos as pessoas foram se despedindo e ficamos só nós dois e a garçonete, que também queria ir dormir. E Benito González me falou assim: – Vai lá chamar seu companheiro, porque é proibido acampar lá fora. Traz ele aqui e vocês podem dormir num lugar abrigado e melhor, a moça vai conseguir cobertores. Amanhã cedo ela vai acordar vocês para vir tomar o café da manhã, por minha conta. Depois você me procura no posto e vamos dar um jeito no visto de entrada.
Fui lá no Bill, ele estava no saco de dormir ferrado no sono e levou um tempo até eu conseguir explicar a nova situação. Recolhemos nossas coisas em silêncio e fomos para o tal lugar abrigado, seguindo os passos do González e da garçonete. Caminhamos uns 50 metros por uma vereda estreita até chegar em frente de um prédio com uma grande porta de ferro. González puxou uma chave do bolso, abriu e empurrou a porta, ela soltou um rangido de ferros pouco azeitados e escancarou a escuridão lá dentro. – Opa, isso parece uma prisão! – protestei sem entrar. – Sim, mas é o lugar melhor e mais seguro para passar a noite, confie em mim! – González retrucou.
Olhei ele nos olhos por uns momentos e caminhei para dentro, com violão, mochila e os cobertores que a moça me passou. Bill me seguiu, a porta rangeu novamente, bateu com um estrondo e a chave girou, nos trancafiando no pretume. Tivemos que tatear nas sombras, mas dormimos bem e no outro dia González cumpriu com tudo. E recebi visto para ir até a polícia de estrangeiros de Santiago regularizar a estadia.