Depois de perambular algumas semanas por diferentes lugares do Chile, fui na polícia de estrangeiros em Santiago, para regularizar minha situação. Lá me encaminharam para uma sala com dois funcionários, o chefe da seção e sua secretária. Meu visto que havia recebido na fronteira já estava bem ultrapassado, e eu estava contando com algum problema, mas não foi o caso. Em toda parte no Chile daqueles dias havia uma atmosfera bem-humorada, as pessoas riam muito e se contavam muitos “chistes” e histórias divertidas, na polícia não era diferente. Meu visto foi ignorado e o que chamou mais a atenção foi o fato de eu ser brasileiro e não ser moreno, como Pelé…
O funcionário foi fazendo perguntas e datilografando com rapidez uma ficha com meus dados pessoais. E me perguntou, sem tirar os olhos das teclas da máquina:
– Que profesión tiene Usted señor Licks?
– Sou compositor – respondi.
– Que cosa? – ele falou imobilizando os dedos e me olhando com ar de quem não entendeu.
– Compositor – repeti escandindo as sílabas. Mas ainda assim, parecia ser algo insólito o que eu dizia e requeria alguma aclaração. Então expliquei que havia estudado música e me dedicava a escrever e interpretar novas composições ao violão. Como sempre, eu trazia meu instrumento comigo, e para reforçar o discurso ofereci tocar uma música ali mesmo, para demonstrar a qualidade do meu trabalho.
– Con mucho gusto! – falou o chefe da seção Riquelme, empurrando para trás sua cadeira com rodinhas, relaxando o corpo e cruzando os braços divertido.
Mas aí a secretária, que até ali tinha estado em silêncio, perguntou:
– Usted puede tocar Strangers in the night de Frank Sinatra?
Surpreso, respondi que sim e fui tirando o violão da capa, enquanto minha mente recuava no tempo.
Minha irmã Mari deixou nossa casa ao se casar e foi morar com seu esposo na rua Osvaldo Aranha, perto do colégio Jacozinho. Na linda festa do casamento – primeira vez na vida em que vesti fatiota – eles tinham ganho um gravador de fita cassete de presente, aparelho que era uma novidade nas nossas vidas. E eu estava de olho nele.
Era um adolescente e a música cada vez mais se tornava o centro da minha atenção existencial, meu sonho era poder gravar alguma das músicas que tocava.
Falei com eles, me deram sinal verde e fui lá conhecer a casinha nova. Passei uma tarde trancado num quarto com o gravador, fazendo experimentos, gravando, escutando, voltando a gravar. Foi uma experiência fascinante e muito reveladora, para quem como eu queria seguir o caminho da música. No final, levei para casa um cassete com duas músicas gravadas: Telstar e Strangers in the Night.
As lembranças dos anos passados me trouxeram uma certa melancolia enquanto tocava esse hit do Frank Sinatra na polícia de estrangeiros de Santiago, mas meus ouvintes gostaram da minha interpretação. O senhor Riquelme voltou a datilografar os meus dados pessoais, sem mais dúvidas a respeito da minha profissão. E a senhora Fresia, que assim se chamava a secretária, me perguntou se eu lhe daria clases de guitarra.
Ela foi a primeira pessoa a quem dei aulas de música no Chile, mas não durou mais que dois meses.
Dessa forma, Strangers in the Night foi, por assim dizer, a Ouvertüre da minha vida legal no Chile.
Mas essa música estava destinada a ser também o tenebroso Finale.
No tempo que passei no país andino, os ares estavam tomados pelos sons de guitarras e dos instrumentos musicais indígenas, como a quena, as zampoñas, os charangos e os bombos legueros, que soavam por todo lado, especialmente nas canções da nova música folclórica chilena, toda ela apoiadora do governo da Unidad Popular.
Eu mesmo me dediquei ao estudo desses instrumentos, especialmente a quena e o charango, que utilizei no meu trabalho com o grupo de teatro Manos. E mais tarde iria utilizar nas gravações dos meus discos.
(O músico chileno Juan C. – que conheci quando fui tocar na población Lo Hermida, levado pelo cantor Nano Acevedo – me emprestou um lindo charango que eu nunca pude devolver, por causa da catástrofe que se abateu sobre todos nós em setembro de 1973. É um remorso que carrego comigo, ele era um rapaz de família pobre.)
Quando os militares tomaram o poder todos os sons musicais se calaram.
Os céus foram tomados pelo som dos aviões de guerra e pelos estrondos das bombas.
Depois, quando o Palácio já estava bombardeado e em chamas, o que se ouviu foi a voz cavernosa dos bandos militares. A seguir se fez um silêncio de morte, cortado pelos tiroteios disseminados pela cidade.
Mas então, para meu espanto, a emissora em poder dos militares golpistas – que era a única rádio que ainda transmitia – fez ouvir nos ares de Santiago a música que eles achavam mais adequada ao povo do Chile.
De repente, todos os sons indígenas haviam sido banidos.
E o som que se ouviu na primeira tarde daquela primavera de sangue foi uma introdução de violinos, seguida da voz de Frank Sinatra cantando Strangers in the Night…