“Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo” (Carlos Drummond de Andrade).
Continuo divagando pelas veredas da vida; um cavaleiro andante em busca da quimera; não do monstro, mas da combinação dos elementos que permearam meus dias do passado, cruzando pelo domingo abençoado, de um dia de descanso. Lá vamos, idealizar um domingo qualquer dos tempos de guri.
Era o piá que não dormia tarde, para cedo acordar. Depois do café, acompanhar os pais ao culto dominical; eles para a Igreja e nós para uma sala, onde boas e bonitas moças ensinavam passagens da Bíblia e os mandamentos de Deus. Tínhamos um cartão, branco, quadriculado, com espaços a marcar a presença nos 50 e tantos domingos do ano. A marca da presença era importante para ganhar presentes do Pastor e das mocinhas no fim-do-ano.
Muito aprendi nos cultos dominicais, até sobre noções de comportamento em uma sociedade civilizada: ao entrar numa casa tinha que se tirar o chapéu e descobrir a cabeça, ou pedir licença para continuar usando; sempre colocar a moça, ou a pessoa mais velha, para o lado de dentro, ao acompanha-la pela calçada (senão a estaria vendendo); nunca dizer palavrão – a mãe até podia colocar pimenta na língua e assim por diante.
Como disse, certas coisas marcaram: até hoje não consigo dizer uma palavra obscena em público, mesmo em conversas informais; fico apreensivo ao ouvir um neto falar impropérios. A descoberta da máquina de impressão, por Gutenberg, possibilitou o avanço do conhecimento, da literatura; a educação tornou-se o marco das mudanças comportamentais.
Em criança, o ensino religioso e as histórias que ouvíamos sobre os grandes vultos da humanidade, certamente ajudaram a moldar nosso caráter e nos definir para a vida futura. E mais uma vez lá íamos nós, junto aos pais, até a praça Rui Barbosa; eles continuavam Ramiro acima e nós seguíamos para a biblioteca, no prédio da Prefeitura. Lá o seu José nos atendia e indicava livros e revistas para ler; permanecíamos por mais de uma hora.
Nos domingos o almoço era especial; já pela manhã, bem cedo, o pai ia ao galinheiro e torcia o pescoço de uma galinha; escaldada, era depenada e limpa, reservando-se os miúdos para a sopa. Galinha frita, massa caseira, arroz e salada de batata – antes, porém, um bom prato fundo de sopa, com massa aletria. Ganhava-se uma garrafinha pequena de Coca-Cola, que o pai comprava no depósito do Beto Cardoso.
Então começava uma nova maratona: apanhar um monte de gibis em bom estado, pedir dinheiro para o matiné no Goio-En, balas e pipocas. O filme começava as duas e a bilheteria abria meia hora antes. Comprar logo a entrada e começar a trocar gibis com a gurizada. E a negociação tinha início: “quer trocar ou só vende?” – conforme a resposta cada um olhava o monte do outro; separava-se os lidos dos não e efetuava-se a troca conforme o estado de cada gibi. Um novo podia-se trocar por dois velhos. Eu gostava muito do Roy-Roger, Hopalong Cassidy e Cavaleiro Solitário (que era o Dr. Ronbledo, sem a máscara). O gibi do Fantasma também era muito bom.
Muitas vezes, matutando aqui com os meus botões, acho que éramos prematuros em matéria de bem-querer e reciprocidade (um sentimento muito próximo ao amor). Cedo começávamos a olhar as mocinhas, alimentando sonhos puros e naturais. Uma espécie de romantismo precoce impulsionou a leitura da Revista Capricho – romances em quadrinhos.
Ao entardecer dos domingos acontecia uma grande reunião de guris da vizinhança e começavam os jogos de esconder, pega-pega, assustar pessoas por detrás dos muros, empoleirados em cinamomos e incomodar as meninas nos seus divertimentos ao longo das calçadas.
Era um tempo de antigamente/ um guri sem vislumbre/ da outrora ao porvir. Calça curta/ andando pelas ruas/ atrás das brincadeiras/ buscando as amizades/ sem nunca lembrar/ de um dia envelhecer.
Guri das matinés/ da troca dos gibis/ dos namoricos inconsequentes/ das meninas/ agora adultas/ por todo o tempo olvidaram. Um simples infante/ gritando como Tarzan/ dando tiros imaginários/ ao estampido da voz. Por deferência especial/ do Poder Superior/ os passos continuam/ na andança pelo presente/ sem vaticino futuro/ só a esperança de continuar … Até quando???