Como de costume, o Prof. Abel passou à porta do salão da Aidinha, pelas 17.30, no seu passeio higiénico diário. E sempre se cumprimentavam com um ‘boa tarde’ e um esboço de sorriso. Não sabiam o nome, um do outro, mas viam -se todos os dias, àquela hora, há vários anos, sobretudo nos últimos tempos em que escasseava a clientela e Aidinha se punha à porta a ver quem passava na rua.
Com efeito, o bairro enchera- se de cabeleireiros ‘low- cost’, salões mais modernos com sofisticadas cabeleireiras brasileiras, enquanto que o salão de Aidinha envelhecera como a dona, não havia ajudantes nem caras novas e por isso, muitas vezes ela vinha até à porta, esperando alguma cliente fiel mais idosa …
Naquela tarde, Aidinha, sem bem saber porquê, resolveu baixar a máscara protetora, e com algum descaramento, perdeu a vergonha e interpelou- o:
‘-O Sr. desculpe, mas não quer que lhe dê um corte nesse seu cabelo? Está mesmo a precisar…’
‘- Por acaso, até não era má ideia… mas só tenho aqui cinco euros…’- respondeu ele, parando, um tanto surpreendido.
‘- Ora, lá por isso, não tem problema… o Sr. logo me paga noutra altura…passa aqui todos os dias…’
E o Prof. Abel, quando deu conta, já tinha entrado, tirado o casaco e viu- se sentado, pronto para lavar o cabelo, meio surpreendido, meio divertido, enquanto Aidinha lhe punha uma toalha e abria a torneira, temperando a água ao gosto do cliente. Entretanto, o professor apresentou- se e por seu turno, perguntou o nome à cabeleireira, e explicou que de facto, era sempre a irmã mais nova que lhe cortava o cabelo, mas ela tinha ido viver para fora e desde então, usava o cabelo assim, meio despenteado e solto, ou em rabo-de-cavalo como os artistas…
‘- Não me diga, que é artista! Eu já tinha pensado isso mesmo… este senhor tem ar de artista…’
‘- Bem, não é bem assim…eu sou pianista e organista… fui professor e diretor de uma Academia de Música, depois passei a dar aulas privadas de piano, mas agora… quase a fazer 80 anos, já não dou aulas… só toco para mim…’
‘- Ahhh! E eu que gosto tanto de piano…o sr Prof não me arranja bilhete para algum concerto seu? Isso é que eu gostava… olhe, nem precisava de me vir cá pagar o corte…’
O Prof. riu- se, esclareceu que já não dava concertos e depois, enquanto Aidinha lhe passava a toalha a secar o cabelo e lhe massajava o couro cabeludo com uma loção fortificante, ouviu- a contar a sua vida…
‘- Pois olhe Sr Prof., aqui onde me vê, sou um pouco mais nova, mas até pareço mais velha que o Sr.; perdi o meu marido num acidente há dez anos atrás ; escapei por pouco, tive uma grande depressão na altura, mas voltei ao trabalho, porque os cabelos são a minha paixão! Depois disso, já estive a morrer por duas vezes com cancro e o covid deu- me cabo dos pulmões, por isso é que uso sempre esta máscara para cuidar dos meus clientes, mas sou uma força da natureza, e o trabalho voltou a salvar- me! E digo- lhe mais, também me sinto artista… não estou nos palcos, não toco, não canto, mas sou artista de cabelos! Olho para os meus clientes, pego – lhes no cabelo, converso, como agora estamos a fazer, descubro – lhes os gostos, o estilo de pessoa, a sua personalidade e todos saem daqui com um cabelo novo, uma obra de arte… diga – me lá, então, quantos dedos posso cortar? Assim, esta altura de três dedos? Pode ser? Não fica zangado? Um cabelo tão lindo e tão mal tratado… até dá pena! Quer risco ao lado, ou ao meio? ‘
O Prof. Abel ia ouvindo e respondendo. Em dada altura, perguntou à Aidinha:
‘- Gosta de música de órgão? Gostaria de ouvir um concerto de Bach? Olhe, vou ser muito sincero, eu já não dou concertos há muito tempo, mas vou voltar a dar um, agora no próximo fim-de-semana, sábado e repito no domingo; um padre, meu grande amigo, daqueles a quem nada se pode recusar, pois salvou- me a alma há uns anos, veio pedir- me para substituir um jovem organista que adoeceu de repente e eu, apesar de um tanto destreinado e nervoso, estou a preparar- me para ir dar um concerto na igreja dele… quer ir ouvir? Arranjo- lhe um bom lugar! Sei que não há muitos lugares, porque o espaço é pequeno, sábado já está tudo ocupado, mas para domingo à noite, tenho muito gosto em lhe arranjar um!’
Encantada com a ideia, Aidinha que já acabara o corte, não parecia querer deixar sair o novo cliente sem o trabalho bem rematado…
‘- Oh Sr. Prof., não sei como agradecer- lhe, mas já agora permita que lhe trate dessa barba e desse bigode… tem quase 80 anos, mas olhe que hoje vai sair daqui rejuvenescido…vai ver que nem se conhece quando se olhar ao espelho…tocar em público assim com um ar muito mais cuidado e apresentável até o vai fazer sentir- se mais confiante! Mas já agora, não me quer explicar isso de um amigo lhe ter salvo a alma?? Sou muito pés na terra, só sei o que é salvar a vida que foi o que os meus queridos médicos me fizeram por três vezes…’
O Prof. Abel ficou calado por momentos.
Entretanto, Aidinha terminara a sua obra de arte e com um espelho mostrava ao seu cliente tudo o que lhe fizera, mas o Prof de repente, pareceu muito apressado…levantando- se da cadeira, vestiu o casaco rapidamente e agradeceu- lhe, despedindo- se…
‘- Fica para a próxima vez! Voltarei… por hoje bastará dizer- lhe que fui muito doido… fiz muita asneira! Em dada altura, perdi- me de amores por uma colega violinista, mulher casada e mãe. Estávamos os dois muito apaixonados, mas ela acabou tudo comigo e decidiu partir para outro país, porque não queria continuar a trair o marido e os filhos; então, senti- me à beira da loucura… estava prestes a pôr fim à minha vida, mas num dia de grande desespero, estava eu sentado num banco de jardim, apareceu – me este amigo, meu antigo colega de Primária… foi ele que me deitou a mão … salvou- me a vida, sim, mas sobretudo, salvou – me a minha alma… levou- me para casa, cuidou de mim. E fez- me regressar à Casa do Pai!
Bem, desculpe, vou andando… obrigado por este seu excelente trabalho, D. Aida! Amanhã venho trazer o dinheiro e o bilhete para o concerto!’
A cabeleireira, comovida, limitou -se a estender- lhe a mão, e apertando- a, com suavidade, disse ao pianista, que aceitava o bilhete para o concerto, mas o dinheiro não.