Continua entrando gente na Embaixada. E tem o refugiado R. D. que é cantor lírico e costuma sair para um dos balcões, onde põe-se a cantar alguma ária de ópera, quando alguém tenta entrar.
Outro dia uma moreninha magrinha quis entrar e já estava passando o portão da Embaixada, quando o carabineiro puxou ela de volta pelo braço. E desceu a lenha na moça, que gritava e lutava para se livrar.
Vendo isso, do balcão o nosso tenor pôs-se a cantar:
Forte Il braccio, fiero Il guardo…
Povera donna, sola abbandonata
Il periglio vi sovrasta
Ah, con tal morbo ogni speranza é morta…
De repente no meio do entrevero apareceu um homem em traje e de óculos, brandindo um documento nas fuças do carabineiro, que então soltou a mulher. O homem em traje devia ser alguma autoridade e conduziu a magrinha pelo braço até uma Mercedes-Benz preta que estava ali estacionada, fez ela entrar e partiram. (No dia seguinte a magrinha pulou o muro dos fundos do jardim e foi recebida por nossos aplausos. Ela contou que foi um diplomata quem a salvou do carabineiro. Ele levou-a ao hospital San Borja, de lá ela viu alguém pular o muro e gostou da ideia.)
Hoje houve duas entradas, uma de manhã que eu não vi, me contou o T., disse que entrou uma sobrinha do Presidente Salvador A., ainda não sei quem é.
A outra foi de tarde, eu vi da janela do primeiro andar, onde estava jogando xadrez. Um rapaz cruzou a avenida e caminhou a passos largos direto para o portão aberto. Ele trazia um bebê aninhado no seu braço esquerdo e uma bolsa pendurada no pescoço. O carabineiro percebeu e foi impedir sua passagem, mas o rapaz coordenou o braço e a perna do lado direito num mesmo golpe simultâneo e jogou o paco para trás, contra as grades. Desci correndo para assistir a entrada dele no salão. Houve a costumeira ovação e no meio dela o bebê se esgoelava chorando. Então o R.D. se aproximou e cantou:
Una furtiva lagrima
Negli occhi suoi spuntò…
A voz pungente do R.D. me faz lembrar do Bottu, um tenor dos tempos em que eu cantava no coro da OSPA, sob a regência do maestro Pablo Komlós. Nas temporadas líricas vinha um cast de solistas do teatro Colón ou do teatro Solis, certa vez veio também esse tenor, para a montagem da ópera Fidelio de Beethoven no Salão de Atos da Reitoria. Foi emocionante poder cantar o Coro dos Prisioneiros com ele.
Não seria má ideia juntar alguns interessados e ensaiar um Coro dos Prisioneiros aqui, que também é uma espécie de prisão. Mas o do Fidelio é em alemão, muito difícil. Mais fácil é o da ópera Nabuco do Verdi.
Vá pensiero, sull’ali dorate…
De qualquer forma, este cenário aqui na Embaixada tem os ingredientes de uma ópera trágica misturada com teatro do absurdo, e a música está presente nos balcões, no jardim, na lavanderia.
Tem até um Noturno, que eu escrevi sobre uma pequena refugiada que fala o seu recitativo enquanto dorme: Mi mamai no, no leva mi mamai…
Na noite da Embaixada Um dia veio a milícia
Se ouve uma voz de criança Levou seu pai algemado
É Janaína, a menina refugiada Depois mandaram a notícia
Que está dormindo e sonhando em voz alta Que ele havia fugido, nunca mais foi visto
Ela se envolve numa alfombra Por isto ela gira
E a mãe deita do lado Com sua mãe por terra alheia
Mas quando os olhos se fecham na sombra Por isto ela mistura as línguas
Vem esse sonho angustiado, e ela fala: E a sua fala se enleia… E à noite ela se agita
Mi mamai no, no leva mi mamai… É o medo de ficar só pela estrada
E no silêncio da Embaixada, no escuro dormindo ela grita:
Mi mamai no, no leva mi mamai…
(https://youtu.be/p9W1etW17io)