Acordei de mais um sonho enigmático.
No meio da noite de Santiago um séquito em fila indiana cruza a Alameda e segue pela rua Morandé, que flanqueia o Palacio de La Moneda. É um séquito de sombras, de vultos indefinidos e cada um porta na sua mão uma vela acesa. A fila entra por uma porta lateral do Palácio e vai descendo por uma passagem que comunica com um subterrâneo debaixo da Plaza de la Constitución. No subterrâneo veem-se duas mulheres e um homem pendurados de cabeça para baixo, todos nus e de mãos amarradas. Sem se deter, os vultos com suas velas dobram à direita e avançam por um túnel em direção ao Cerro Santa Lucía.
Então a cena muda, desaparecem os vultos e estou eu no meio de um cruzamento circular para onde convergem várias ruas repletas de carros, que só esperam o sinal do guarda de trânsito para avançar.
Eu estou no caminho deles e tenho que sair dali para não ser atropelado. Mas meus pés não se mexem, porque estou tentando descobrir o verbo adequado a partir da palavra manuscrito: manuscritear? manuscreter?… Diferentes possibilidades se desenham na minha mente, mas nunca a correta, e ali fico insistindo.
Então os carros dão a partida e para me salvar deles recorro ao guarda de trânsito, que para minha surpresa vem a ser o Ariel Gibramsalt…
Conheci Ariel certa noite, depois do ensaio com o grupo de teatro Manos no Museo de Bellas Artes.
Era um sábado e eu não tinha a menor vontade de pegar a micro e voltar para Las Rejas, onde morava com um bando de gente na casa alugada pelo Sabão.
Fui caminhando, contornei o Cerro Santa Lucía – tan pecador por las noches, tan inocente de dia – e resolvi dar uma passada na Casa de la Luna Azul, um bar frequentado por gente da boemia. Para o meu desencanto, não tinha ninguém lá, tirando o casal de donos, e saí de novo a caminhar.
Enveredei pela calle Villavicencio e logo me atraíram as luzes e o bulício de um local que não conhecia, situado numa elevação. Subi a escadaria e entrei, pedi um vinho e fui sentar, fiquei observando o ambiente e as pessoas.
O lugar tinha ares de Belle Époque, com suas mesinhas redondas, pinturas nas paredes e uma profusão de garrafas de muitas cores diferentes na estante de bebidas. Os frequentadores – por todo lado em grandes papos – pareciam ser intelectuais e artistas, a julgar pelo aspecto e pela forma de vestir.
No meio de tudo, um trio à minha direita me chamou a atenção, eram homens já não tão jovens, um deles trazia uma câmera fotográfica pendurada no pescoço. Destoando da maioria, eles quase não conversavam, pareciam dedicar-se à observação, mas ainda assim irradiavam uma aura de mútua afinidade, como se fossem velhos amigos.
Os Três Mosqueteiros, pensei comigo mesmo…
E quando o mozo deixou a taça de vinho tinto na mesa e fiz menção de beber o primeiro gole, percebi o olhar do mais magro e mais alto dos três fixo na minha direção.
Eu estava me sentindo bem ali, e de repente me veio a vontade de conhecer aquelas figuras.
Num gesto espontâneo, querendo entabular conversa, sustentei o olhar que me olhava, levantei minha taça na direção dos três e proclamei:
– Viva el color rojo, que es el color del fuego y del calor de la vida!
Então os outros dois mosqueteiros também viraram o olhar para mim, mas o magro alto soltou uma risada rasgada e retrucou:
– Pero joven, quien conoce bien el fuego sabe, la llama que mejor calienta es azul…
Foi uma resposta que adubou meu vinho e minha curiosidade. E querendo devolver algo à altura da sua sutileza, recitei com a taça em alto uns versos que me vieram à mente, num voo da memória desencadeado pela palavra azul.
Si, seré siempre um gandul
Lo cual aplaudo y celebro
Mientras sea mi cerebro
Jaula del pájaro azul
Ouvindo isso o mosqueteiro ergueu sorrindo sua taça num brinde e confirmou:
– Versos de Rubén Darío!
Então levantei e fui conversar com eles.
Se tratava de fato de três velhos amigos, um escultor, um fotógrafo e um filósofo de nome Ariel Gibramsalt.
Na conversa que rolou entre nós – primeira de muitas que vieram depois – Ariel me contou que Rubén Darío é muito importante para a cultura chilena, o Parque Forestal leva seu nome e tem uma lápide em sua homenagem. Ele foi um niño prodígio, chamado para recitar poemas em solenidades, e viveu um tempo no Chile, onde publicou seus primeiros livros, entre eles Azul, considerado o iniciador do Modernismo em língua espanhola.
(Um impulso misterioso me levou a comprar o livro Azul num sebo da rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, sem nunca ter sabido nada desse poeta. Foi o primeiro livro de poesias em espanhol que li, me acompanhou na minha longa viagem dos pampas aos confins amazônicos e depois em terras hispânicas, em algum lugar me afanaram.)
Naquela noite me convenci que o Chile – terra de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, dois prêmios Nobel em menos de 30 anos – era um bom lugar para mim viver. E foi dessa maneira que o livro Azul me conduziu ao espírito de Ariel, que passou a ser um personagem central para mim, no tempo em que vivi nessa estreita faixa de terra espremida entre os Andes e o oceano Pacífico.