Cai a noite. E junto com ela a temperatura, que deve aproximar-se do zero. A caminho do hotel colho um instantâneo soturno. Milhares de sepulturas, marcadas por pilaretes brancos, gritam pela morte de militares que morreram defendendo Sarajevo há apenas três décadas.
Temos poucas horas nesta cidade onde Gavrilo Princip assassinou Franz Ferdinand, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, em junho de 1914. Gavrilo pertencia à organização terrorista Mão Negra. Escutei de um local que a Áustria à época exigiu que a Sérvia entregasse os conspiradores. Influenciada pela Rússia, a Sérvia recusou e a guerra foi declarada, deflagrando a Primeira Guerra Mundial. Desde então a palavra Balcãs não saiu mais da enciclopédia dos conflitos com repercussão mundial.
Em 1980 Tito desceu à sepultura. O arranjo que mantivera com mão de ferro começou a esboroar. A Eslovênia foi a primeira a pular fora. Debaixo de guerra, Croácia e Bósnia seguiram o exemplo e Sarajevo seria sitiada por quase quatro anos.
Desde a nossa chegada conversei com pessoas que testemunharam aquela tragédia. Uma delas relatou que em sua casa todos votaram para uma decisão coletiva. Seu pai tinha parentes em zonas livres e convocou a família a pular fora. As filhas disseram que não iriam. A mãe foi solidária a elas e todos permaneceram. Mal sabem como sobreviveram. Dia e noite, tiros e granadas.
Sarajevo foi construída num vale. As colinas circundantes foram locais excepcionais para snipers, que abatiam os que se aventurassem pelas ruas ou mesmo se arriscassem numa vidraça. Integrantes do terceiro maior exército europeu à época, foi como se os iugoslavos praticassem tiro ao alvo nos que se homiziavam atrás de muros ou nas sombras da noite.
Como conseguir alimento? Energia elétrica? Uma a duas horas, incertas, por dia. Água? Ponto crítico. Algumas residências tinham poços e a solidariedade imperou. Alimento? A ONU tomou conta do aeroporto, que estava fora do cerco, e um túnel de centenas de metros permitiu a passagem, inclusive de um cabo para abastecimento elétrico precário da cidade. Como se defenderam? De todas as formas. Civis obtinham metralhadoras Kalashnikov no mercado negro e uma capacidade de resistir poucas vezes vista na história humana entrou em ação.
Uma das pessoas que entrevistei relatou que depois de algumas semanas de contínuo bombardeio os moradores perceberam que a coisa iria longe e que precisavam tocar suas vidas. Trabalharam tanto quanto podiam e as escolas seguiram o baile. Enquanto isto, segundo Dino Beso, “as únicas imagens que as televisões estrangeiras mostravam das pessoas de Sarajevo eram de senhoras velhinhas com lenços na cabeça”.
Convencido de que era preciso mudar aquela idéia transmitida ao mundo, Dino decidiu organizar um concurso de beleza. Sim, um inimaginável concurso de beleza numa Sarajevo debaixo de bombardeios. Nada tão impossível segundo a crença nos Balcãs de que a Bósnia começa onde a lógica termina.
As candidatas seguraram no palco uma faixa com a mensagem “Não deixem que nos matem”. O evento sensibilizou o mundo, mas a guerra duraria ainda mais de dois anos. Desde a fronteira com a Sérvia percorremos mais de cem quilômetros e o que vimos foi um país muito bonito, com enorme potencial turístico e que segue se reerguendo.
Enquanto permanecemos nos Balcãs, explode o conflito na Faixa de Gaza, depois do absurdo ataque terrorista, que uns e outros exaltam, nos lembrando quão inumanos podemos ser. Os ódios não têm prazo de validade. Prova disto foi a inauguração por líderes políticos sérvios da Bósnia de uma nova estátua de Gavrilo Princip, celebrado pelos mesmos como um herói, que sacrificou sua vida pela liberdade. Agora, diante da bestialidade no Oriente Médio, é hora de corrigir uma injustiça: não é só na Bósnia que a lógica termina.