Acordei com o estômago doendo, estava escuro ainda, Lucho, sua mulher e Cholita dormiam lá no fundo.
Era começo de junho, e pela madrugada o frio se infiltrava e gelava. Dormia na minha rede de palhinha de tucum, que eu tinha armado no centro do taller, perto da mesa de trabalho. Mas não estávamos no Amazonas, o frio não tinha graça, eu deitava completamente vestido, como se estivesse na rua, com a velha japona militar e as botas de cavalariano.
(Sem perceber, minha indumentária me havia transformado em um legitimo andrajoso cavaleiro da triste figura, um oficial do exército brasileiro pelo avesso do avesso.)
Me afanei em revirar o corpo e buscar uma posição mais quente, mas a dor de estômago não queria passar. Era cedo demais, quis dormir de novo, mas tava difícil. O que foi que comi, prá desarranjar deste jeito, parece uma garra arranhando a mucosa do estômago. Repassei o dia anterior buscando as causas, sem encontrar nenhuma, pois não havia comido nada! E num relance compreendi: aquilo era fome.
Levantei, pendurei a rede no prego, peguei o violão e saí para a rua.
Fui caminhando a calle Carmen em direção à Alameda, calculando o tempo que levaria, num passo tranquilo, até o Mercado do Mapocho, talvez uns quinze minutos? Chegando lá, com sorte encontraria alguém daquele pessoal que conhecera con Juan. Nas alturas do Museo de Bellas Artes senti que a caminhada aquecia o corpo e diminuía a dor.
Quando cheguei lá o dia estava clareando. Já havia algum movimento nas tiendas, mas não encontrei ninguém conhecido. Decidi esperar e sentei no chão, encostado em uma das barraquinhas que havia por ali, na beira do rio Mapocho. Cochilei alguns momentos e acordei com ruídos de metal, no interior da barraquinha. O dono havia chegado e estava preparando os utensílios, um fogareiro de querosene, uma sartén e uma pá de virar o peixe já estavam sobre o pequeno balcão. Que idade teria, uns vinte e cinco anos? Mas a pele macilenta e o desbotado dos olhos era de bem mais.
Falei buenos dias e perguntei se já tinha merluza para vender.
– Ainda não, mas no Mercado já chegou o peixe, já vou lá buscar. Y vos de dónde venis? – ele perguntou.
Brasileiro, falei sem muita ênfase, por causa da dor que ia e vinha. Mas ele se entusiasmou:
– Brassilero! Y que estás haciendo por aqui?
Percebi que ele não era chileno, seu castelhano era diferente. Falei que estava viajando, conhecendo o Chile.
– Aha, eu também fui giramundo! Daniel é meu nome, sou uruguaio – explicou com os olhos mais reluzentes.
E me contou que havia viajado por vários países, até chegar no Chile alguns meses antes. E coincidiu com a chegada dos barcos soviéticos, barcos-fábricas que pescam, limpam e processam o peixe para sua venda, além de fabricar farinha de pescado. Ele ouviu falar da Batalha da Merluza, que o Presidente anunciou, e decidiu parar de viajar e abrir uma barraquinha de vender merluza frita.
A dor no estômago começara de novo e perguntei o preço da merluza.
– Dois escudos. Me espera aqui, vou lá buscar e já volto.
Tudo bem, ainda tinha cinco escudos, que sobraram daqueles dez que encontrei no chão.
Ele voltou com uma caixa de cartão, dentro estavam os peixes numa barra de gelo.
Já era dia claro, o vai-e-vem no mercado havia aumentado e a minha merluza estava chiando no azeite.
O uruguaio queria conversa e eu não queria desapontá-lo, mas o sono e a dor de estômago não ajudavam.
Recebi a merluza empanada em sêmola de trigo, envolta numa pequena servilleta triangular de papel, fui comendo bem devagarinho, junto com uma marraqueta de pão.
Depois enfiei a mão no bolso da japona e puxei os escudos.
– No, déjeselos… Guarde o dinheiro, você está precisando mais – ele falou.
Relutei um momento, era de manhã tão cedo, estava com tanto sono… Mas tirei o violão da capa e comecei a tocar aquela balada do Nelson Ned, que todo castelhano conhece e adora:
„Mas tudo passa, tudo passará,
e nada fica nada ficará…“
E não deu outra, ele adorou.
– Passe aqui no sábado, tenho algumas amigas, vamos sair e tomar vinho. Pero trae la guitarra!
Guardei o violão, apertei a mão do Daniel e saí a caminhar.
Era uma manhã de sol e resolvi desviar para o parque Gran-Bretaña, à esquerda do Mapocho. Me deitei na grama com a cabeça na sombra de uma árvore e o resto no sól, senti os pés esquentando e um torpor gostoso no corpo. Fiquei pensando na Batalha da Merluza, tinha lido sobre o assunto. A escassez de alimentos e produtos básicos vai aumentando, é o principal argumento dos inimigos do governo popular.
Em solidariedade aos chilenos, os soviéticos emprestam à Companhia Pesqueira Arauco os barcos Sumy, Astronom e Yantar, com uns 70 e poucos tripulantes e recursos técnicos que os barcos chilenos não possuem. E agora há duas vezes mais merluza e bem barata. O quilo de carne, que quase não se encontra, está em 40 escudos, o de merluza em 3,50 escudos.
Só que a infraestrutura frigorífica nacional não está preparada para tanta merluza, é preciso incrementar esse setor industrial. Além disso a direita está boicotando como sempre, o jornal El Mercurio denunciou que „o governo socialista quer impor aos chilenos novos hábitos alimentares“…
A agricultura chilena não produz o suficiente para alimentar a população, e cada ano o país necessita importar uns 200 milhões de dólares em trigo, carne, manteiga, etc. Só que as divisas chilenas estão se esgotando, a maior fonte é a venda do cobre, mas o preço está em queda no mercado internacional, sem falar nos boicotes.
Por isso é tão crucial a Batalha da Merluza, cada tonelada de carne que é substituída por merluza representa uma economia de mil dólares. E os barcos soviéticos estão pescando cerca de 2.500 toneladas diárias, sem com isso atrapalhar os pescadores artesanais chilenos, pois buscam o peixe bem longe da costa, nas profundezas do oceano Pacífico.
Eu adoro merluza, que tem mais proteínas que a carne de gado.
E não tem espinhas.